A
força policial é a última forma de controle social dos Estados modernos. Antes
do uso direto da violência contra a população civil há toda uma mecânica capaz
de ajustar os sujeitos aos objetivos da reprodução das relações sociais
pautadas basicamente no trabalho alienado de forma a garantir o bom
funcionamento das redes de mercado, das burocracias, em suma, das relações de poder
e dominação. O uso da violência, apesar de corriqueiro, gera imensos desgastes
ao Estado havendo iminência de convulsão social que acaba por comprometer a
fina capa do estado democrático de direitos (tema que não vamos aprofundar
neste texto). O Estado então precisa justificar o uso da violência e para isso
constrói seus discursos que basicamente se resume em garantir a manutenção da
ordem pública quando na verdade a polícia existe para defender os interesses da
classe dominante.
A
legalidade não é nem nunca foi o parâmetro ou critério para o uso das forças
armadas contra as populações. A polícia age, sobretudo, contra a legalidade
burguesa (mas não contra a burguesia) garantindo a permanência do estado de
exceção. Uma coisa é a lei, outra coisa é o que a
polícia faz, afirma David Whitehouse em As Origens da Polícia. O uso da
polícia obedece a um determinado conjunto de interesses econômicos e políticos
que geralmente atende à garantia intocável da dominação burguesa que sacraliza a
propriedade privada legitimando o monopólio dos meios de produção. A jurisdição
existe para corroborar e organizar este funcionamento. Sobre a lei, David
afirma o seguinte:
“Primeiro, algumas palavras sobre
a lei. Apesar do que possamos ter aprendido em sala de aula, a lei não é o
marco no qual opera a sociedade. A lei é o resultado de como a sociedade
funciona, mas não nos diz como as coisas realmente funcionam. A lei tampouco é
o marco em que a sociedade deveria funcionar, embora alguns tenham essa
esperança. A lei é, na verdade, uma ferramenta nas mãos daqueles que têm o
poder de usá-la, para alterar o curso dos acontecimentos. As corporações são
capazes de usar essa ferramenta porque podem contratar advogados caros.
Políticos, promotores e policiais também podem usar a lei. A lei trata de
crimes, e são indivíduos que são acusados de crimes. Mas na verdade a polícia
foi inventada para lidar com o que os trabalhadores e os pobres podem vir a se
transformar em suas expressões coletivas: a polícia lida com multidões,
bairros, selecionando partes da população – todas entidades coletivas.” (As
Origens da Polícia. Passapalavra)
A
polícia é órgão imprescindível no controle das massas, sobretudo quando estas
passam do estágio de meras reivindicações às ações pautadas na organização dos
trabalhadores com o objetivo central de retomar o controle da produção ou
simplesmente de construir algum tipo de autonomia independente do Estado e sua
burocracia ou das relações de mercado. Neste ponto, a polícia, seja ela
militar, federal ou civil, age conjuntamente impedindo, por meio não outro que
a criminalização, tortura e assassinatos, a organização popular.
Numa sociedade
cindida entre classes antagônicas, o discurso de que a polícia, os exércitos e
guardas servem ao interesse geral funciona apenas como artifício que busca
legitimar a permanência e legitimidade de tais forças, criando artificialmente
a ideia da imprescindibilidade da repressão como garantia da ordem pública. No
entanto, na prática a letalidade da polícia é exclusivamente direcionada a um
determinado segmento da população com um recorte de classe e notadamente de
raça. O racismo contra os negros , segundo David
Whitehouse, esteve presente na polícia norte-americana desde seu primeiro dia. A
juventude negra periférica é o público-alvo preferencial da polícia militar. O
que aparentemente reflete um despreparo é na verdade o objetivo e a função
histórica da polícia, instrumento político da classe dominante. A função social
da polícia está diretamente ligada à manutenção do status quo.
De
uma forma geral, o capitalismo é um sistema que organiza os seres humanos
submetendo-os a uma determinada lógica de produção o que acaba por gerar uma
forma específica de sociabilidade onde primeiramente existe uma divisão social
do trabalho havendo os que detêm o monopólio dos meios de produção, portanto,
comandam e os comandados, que possuem apenas sua força de trabalho explorada
para a produção de mercadorias, naturalizando as relações de subalternização
dentro de um sistema que apesar disso promete certa mobilidade social o que é
absolutamente falso se pensarmos a nível estrutural da sociedade, pois sua
natureza é hierárquica. Este sistema, por sua vez, a partir da produção
incessante de mercadorias obtém o lucro por meio não outro que a exploração
dessa força de trabalho que participa dessa produção como mais uma mercadoria
garantindo a reprodução do capital. Este sistema exclui o trabalhador de
qualquer interferência na lógica da produção a não ser como força necessária ao
funcionamento das relações mercantis. No capitalismo, no entanto, a produção e
a infra-estrutura existente ainda que produzido coletivamente é apropriado e
distribuído de forma desequilibrada gerando desigualdade social.
O
policial não é ensinado a pensar a complexidade das contradições sociais em
seus processos históricos. Ele aprende que a desigualdade sempre existiu e que
não lhe cabe modificar essa realidade. A sua função está em proteger o “cidadão
de bem” (e resguardar a propriedade privada) dos despossuídos que possam vir a
levantar-se contra sua condição de miséria o que configura crime. A polícia,
portanto, protege justamente quem não precisa de proteção. A condição de
fragilidade social e desamparo, que devia ser da ordem do intolerável, é o que
leva as massas despossuídas de homens e mulheres a exaltar-se contra o sistema,
e não sua suposta natureza maligna de homens mal intencionados e vingativos. O
sistema de uma forma geral constrói a ideia de que existe uma luta entre o bem
e o mal o que não é só uma simplificação, mas uma falsificação da realidade
adaptando esta a uma leitura absurda que serve a dar um lugar social e
legitimidade às forças armadas.
A
polícia é um órgão de classe, que responde aos anseios e necessidades da classe
dominante. Diferente do que a corporação prega, ela não serve ao interesse
geral reproduzido no slogan “servir e proteger”. A polícia surge no início do
século XIX na Inglaterra e França para lidar diretamente com as massas. O fato
de ser o exército o responsável em conter as massas reivindicantes, acabava por
produzir verdadeiros massacres com alto índice de mortalidade entre
trabalhadores que lutavam por melhores condições de vida. O assassinato direto
de trabalhadores gerava mártires e ao invés de conter a população inflamava
ainda mais os ânimos tendo o perigo do descontrole por parte do Estado. A
polícia surge como força não-letal, capaz de conter e dispersar as massas. Seu
surgimento, portanto, como afirma David Whitehouse, “não foi uma resposta ao
aumento dos delitos e na realidade não supunha novos métodos para tratar de
fazer frente ao crime.” David explica que a delação era a maneira que as
autoridades encontravam para resolver os crimes. A polícia especializou-se em
impedir que as manifestações populares pudessem fazer frente ao Estado burguês
a ponto de materializar suas reivindicações, como a redução da jornada de
trabalho, etc.
Por
não objetivar outra função além da riqueza permanente de uns poucos, pouco a
pouco o capitalismo retira dos sujeitos sua capacidade de se sensibilizar com questões
que são da ordem do intolerável, como por exemplo, a miséria ou as relações de
dominação o que acaba por ir contra qualquer preceito humanista entre o gênero
humano. Neste aspecto, não são apenas os policiais destituídos de humanidade se
não de toda a população que não mais busca reverter ou superar condições
impróprias de se viver a vida. No entanto, os policiais são dotados de uma
forma particular de desumanidade, pois são desde sua formação instruídos a se
resituar na sociedade como um segmento superior e o único capaz de garantir a
ordem por meio da violência. O exercício de uma espécie de poder soberano (pois
como sabemos a polícia detém o monopólio da violência automaticamente detém
também o poder sobre a vida dos sujeitos) coloca o agente repressor em posição
privilegiada compensando todas as demais faltas que possuem. É notória a
obsolescência das concepções de mundo da esmagadora maioria dos policiais, que
não está programado a qualquer debate de ideias e quando assim for caberá a um
determinado corpo de especialistas ou oficiais (ou se quiser intelectuais
instruídos para isso) defender de forma implacável suas posições em manobras ou
malabarismos retóricos cabendo aos demais apenas executar ordens (por mais
absurdas que possam ser). A rígida hierarquia militar impede o pensamento.
Pensar não é a função dos agentes da repressão. Mas isso não quer dizer que a
polícia não possua uma racionalidade. Ela obedece a uma razão de Estado.
Pasolini
trabalhou com essa temática no clássico filme 120 dias de Sodoma, desnudando o
Estado em momentos que o fascismo aflora como sua natureza mais vil. A razão de
Estado, neste caso, é a garantia de que as relações e interesses da burguesia
não serão desvirtuados apesar dos enfrentamentos possíveis que por hora possa
vir se colocar contrário à existência do Estado oferecendo certa resistência.
A
impressionante letalidade da Polícia Militar denuncia o que alguns podem chamar
de “descontrole” das forças repressivas. No entanto, se avaliarmos o contexto
sócio-histórico atual perceberemos que o uso da força repressiva obedece a um
projeto de sociedade e poder respondendo aos anseios de uma parte considerável
da população que clama cada vez mais por segurança. O maciço investimento nas
polícias e exércitos contrasta com o pífio investimento em setores fundamentais
que vêm sofrendo cortes brutais. A ideia que se quer passar é a existência de
um perigo iminente sendo a única garantia de resguardo da população as forças
repressivas. A ameaça, segundo essa perspectiva, é tanto interna como externa.
Por conta de interesses econômicos principalmente em torno de riquezas naturais
como o petróleo e outras reservas, a economia capitalista busca recuperar-se
produzindo conflitos numa suposta defesa da vida democrática acusando governos
locais de serem ditatoriais neste caso sempre atrelando a este autoritarismo ao
famigerado projeto totalitário comunista, mesmo o comunismo não tendo qualquer
expressividade real como força popular muito menos entre governos.
Por
outro lado, no que diz respeito à ameaça interna o combate ao inimigo é não
outro que os movimentos populares ou simplesmente a ameaça de eclosão de focos
de setores de trabalhadores que ainda reivindicam direitos dentro dos limites
da legalidade burguesa. Mesmo não transcendendo qualquer excesso fora dos
parâmetros legais, a criminalização (que é antecedida por cortes que geram a
precarização de milhares de trabalhadores), é o artifício criado pelo Estado
como forma de estancar as lutas sociais desviando o foco da crise para os
distúrbios sociais gerados pelas lutas de reivindicação. A ameaça comunista
também é vista como um perigo interno sendo essa a justificativa para o
desmantelo da educação pública colocando em seu lugar um tipo de revisionismo
com viés nitidamente fascista.
Isso
coloca a repressão como necessidade à reorganização do corpo social construindo
inimigos que o Estado historicamente explorou como justificativa aos seus atos.
Neste caso, a mentalidade do policial é reprogramada a agir como historicamente
lhe foi determinado. O inimigo do policial é a suposta degenerescência moral
incorporada em sujeitos históricos que buscam romper com os pressupostos e
valores da razão instrumental da burguesia. São inimigos da polícia os
moradores e artistas de rua, professores e intelectuais de esquerda,
estudantes, sindicalistas, trabalhadores autônomos, feministas, anarquistas,
jornalistas e comunicadores que denunciam este estado de coisas, etc. A Polícia
Militar é a que executa o trabalho sujo de limpeza social.
As
Jornadas de Junho de 2013 só foi completamente dissolvida devido ao trabalho de
inteligência policial de sabotar as massas, produzindo o terror no interior das
manifestações a ponto de gerar o completo caos entre manifestantes, reportado
em mídias burguesas como algo da ordem da barbárie, sendo necessário o pulso
firme do Estado para conter as massas. O medo da violência também foi fator
decisivo para o esvaziamento das manifestações que passou a ter cada vez menos
gente. As ações criminosas da polícia não deixa dúvida sobre a natureza
terrorífica do Estado, que possui no seu interior um setor específico de
agitação política. São homens treinados a gerar determinadas conturbações em
ações não previstas entre os próprios manifestantes de forma a
responsabilizá-los por prejuízos causados pela violência das massas basicamente
contra símbolos do capital ou estabelecimentos como a loja da Toulon no Leblon
como meio de propagar a revolta popular e a luta social.
A
repetição do discurso do “erro policial” ou dos “excessos” ou ainda dos
“abusos” gerados e cometidos por policiais ausenta de responsabilidade a
própria corporação e o Estado induzindo a leitura de que o problema está em
determinados indivíduos que se desvirtuaram da função principal da polícia que
é “servir e proteger”. Ironicamente quase todos os dias as mídias independentes
denunciam “casos isolados” de diversos atos criminosos praticados por policiais
em conluio contra populações pobres. São assassinatos, espancamentos, despejos,
sequestros e torturas que ocorrem visivelmente à luz do dia veiculados em
mídias e redes virtuais causando revolta de uma parte considerável da sociedade
e satisfação de um amplo setor que clamam por mais segurança.
Quando
pensamos na polícia, pensamos em homens íntegros e vigilantes. Quando ocorre
algo que excede essa expectativa ou essa leitura a explicação é de que a
corporação é contra tais atos e caberá a ela averiguar o procedimento aos
excessos cometidos. Mas se esses excessos estão sempre ocorrendo cada vez com
mais frequência, fica claro que a forma de funcionamento da polícia baseia-se
nos mesmos excessos e supostas disfunções às quais ela julga combater no seu
interior. A polícia não pode, portanto, lutar contra o que ela é, contra sua
própria natureza. O máximo que se faz é regular essas contradições e excessos
para isso não transbordar de forma a comprometer a função social da polícia.
O
discurso do “policial despreparado” então não se sustenta na prática cotidiana.
Pelo contrário, o policial é preparado e estimulado a cometer tais atos. Isso
levanta um importante debate que devemos promover sobre a ausência de qualquer
resquício de alteridade e humanidade por parte dos agentes da repressão
estatal, o que por um lado garante a manutenção do status quo, mas que também
eleva o nível de suicídio entre policiais que acabam por não suportar o próprio
“trabalho” que devem exercer.
Quando
se perde a capacidade de agir como ser humano nos distanciamos da sociedade e
de como podemos pensar seus processos e contradições e meios possíveis de
resolver problemas que aparentemente não podem ser resolvidos. O ser humano se
caracteriza muito por conta de sua capacidade de colocar-se no lugar do outro.
A alteridade é qualidade sem a qual não se desenvolve a plena capacidade humana
que é basicamente desenvolver suas habilidades não em proveito próprio, mas que
tais desenvolvimentos possam beneficiar o conjunto da sociedade. O
desenvolvimento das habilidades humanas faz parte de um processo histórico,
portanto social de interdependência entre os sujeitos sociais que submetem seus
esforços em nome do bem coletivo.
A
ausência de humanidade instrumentaliza a força repressiva em agir sob comando
inquestionável de superiores sendo a desobediência algo da ordem do intolerável.
Percebemos na prática que o tratamento diferenciado dado a criminosos da alta
burocracia estatal ou de grandes empresários é bastante claro por estes
possuírem a sua própria polícia, neste caso a polícia federal, como diferenciação
social evidente. Com relação a policiais criminosos também fica evidente que a
forma como a repressão se organiza com seus próprios critérios de avaliar a
punição de seus agentes com tribunais e legislação própria para estes casos é o
meio mais evidente de isentá-los de qualquer condenação severa.
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