O
cinema é uma arma política. Disso é bom que ninguém tenha dúvidas. Uma série
como essa num momento como este tem um significado político muito grande. Para aqueles
que acreditam que cinema é mero entretenimento está de ingenuidade no jogo do
poder. O cinema não é neutro, como nenhuma arte ou ciência pode ser. Ele serve,
de um modo geral, a um determinado fim, qual seja, os objetivos centrais da
classe dominante. Nesse sentido, o cinema reforça o status quo. Por outro lado
ele pode ser uma ferramenta que resista ao que está estabelecido e por isso
luta para desestabilizar a ordem ao passo que defende um projeto revolucionário
não dissimulando os antagonismos, motor da luta de classes. O que envolve a
indústria na sua quase totalidade serve para reforçar o que está estabelecido,
ainda que pareça carregar certo teor crítico. O cinema industrial também tem
sua cara progressista, mas o pior é quando a direita propriamente dita se
apropria dessa ferramenta invertendo as pautas na defesa de uma sociedade
fascista. Neste
caso, a série “O Mecanismo” fala de tudo, menos do tal mecanismo, muito menos
sua superação. O mecanismo é como se fosse um espantalho, um simulacro. O que
está por trás é o mais relevante. É como se fosse um romance da sociedade
burguesa que se recupera apesar das fissuras causadas por evidentes disputas. Aponta
para determinados elementos já demasiadamente explorados pela mídia burguesa,
políticos e intelectuais progressistas como principalmente a crença no
equilíbrio e justiça da república. “Aqui, todos somos iguais”, diz um personagem
do Ministério Público. Não é bem assim, sabemos. Toda a trama envolvente, com
uma narrativa cheia de aventuras e momentos de tensão não se desenvolve na
suposta defesa da república, mas do capital, este sim o dono do jogo e deve ser
defendido custe o que custar.A
polícia federal, ainda com todos os problemas internos que se dão claramente
por interesses políticos obnubilados mas que ali estão, aparece como o
suprassumo da justiça, incansável, guerreira. Chega a dar pena do personagem de
Selton Melo, que ganha pouco, trabalhou anos e só comprou um sítio e um carro
velho com o salário de policial federal. É injustamente afastado, mas continua
a sua saga pela busca da verdade, ainda que no fundo saiba que está em
desvantagem, pois é neutralizado por forças mais agressivas; num devaneio na
garagem com sua esposa descobriu que o mecanismo é o funcionamento de toda a
máquina e que ele é infinito, como uma espiral que anestesia a sua filha que
por vezes entra em colapso. Esse mecanismo envolve tudo, desde o Seu João ao
empresário mais poderoso. E ele luta contra isso. A última cena, no bingo
clandestino mostra que sua determinação o persegue, deixando a coisa em aberto.Ora,
fora a parte todo o espetáculo banal da narrativa batida do cinema comercial, numa
sociedade altamente estratificada onde uma ínfima parcela concentra boa parte
das riquezas, e onde se tem o monopólio dos meios de produção, há de se admitir
que sem corrupção nada disso funciona e a polícia federal (assim como todo o
conjunto das forças repressivas e da burocracia estatal) faz parte desse
mecanismo funcionando como um amortecedor que regula os excessos não deixando o
leite derramar evitando o colapso. A corrupção na sociedade capitalista é o
modo pelo qual as coisas funcionam sobretudo quando se envolve o poder
econômico. Todo o tratamento cuidadoso
quase afetivo com os “corruptos” mostra uma particularidade dessa força que é
onde e como atua. Ela é muito diferente, por exemplo, da polícia militar, que
não trata os seus inimigos por senhor ou entra na casa com madado, bota algema
e produz todo aquele espetáculo como se fosse possível acreditar naquilo. Numa
leitura direta, não há nada mais corrupto que o conjunto das forças
repressivas, que defendem de forma intransigente os interesses do capital e
seus pressupostos como a propriedade privada e os privilégios da classe
dominante. Essa justiça do alto escalão não se reflete nas lutas populares,
pois onde há polícia há repressão. Ali há negociações. Ou seja, está fora de
questão resolver o problema porque ele não pode ser resolvido nos moldes da
justiça burguesa tampouco dos acordos internos.Esse
tipo de cinema que ludibria produzindo heróis é um marco na produção
cinematográfica brasileira e é reforçada por grandes estrelas o que ajuda a
convencer. A sua forma estética e narrativa também parece ser um modelo que deu
certo e contribui para isso. O herói é o Estado. É nele que, em última
instância, mora as esperanças da justiça ser estabelecida. No entanto, o Estado
não tem como função social defender a justiça senão os interesses da burguesia
ao passo que contém as revoltas sociais na base da repressão e silenciamento
dos trabalhadores organizados. A corrupção não ameaça a integridade do Estado.
Na sua ausência haveria uma grande inoperância das suas principais funções.Mais
do que apontar críticas evidentes para qualquer olhar atento, é preciso pensar
um cinema comprometido com pautas absolutamente outras. Em primeiro lugar, o cinema
deve educar e não o contrário. Só assim ele contribui para o avanço das lutas
populares que é onde realmente mora a justiça. A justiça não mora na burocracia
estatal nem na cabeça de nenhum agente da lei. A justiça é resultado do
enfrentamento inevitável entre a classe trabalhadora e a burguesia, sendo os
trabalhadores os únicos capazes de fato acertar as contas contra quem manda no
jogo. Nesse caso não há necessidade de delação, pois desde muito já se conhece
as práticas do inimigo. Este cinema que aí está com larga difusão não deve ser
visto com nenhum espanto pelas suas escolhas políticas. Ele está apenas fazendo
a sua função. Ele é o cinema da ordem. A questão central aqui é pensar as
alternativas possíveis e a organização dos setores autônomos.
“Não existe poder político. É uma farsa. Política faço eu no meu trabalho que não visa poder nenhum.” Eduardo Marinho Sempre que nos colocamos a analisar algum artista e suas contradições devemos prezar minimamente pela sua história e seus esforços. Ainda que haja contradições evidentes a alteridade é um valor que deve estar sempre presente em nós, pois assim não nos destituímos de um importante valor humano que proporciona uma gregariedade livre das disputas mesquinhas muito presente na sociabilidade capitalista. Também não nos deixamos cair facilmente na destruição de reputações e difamações gratuitas, algo muito presente na esquerda identitária pós-moderna proto-fascista que tem somente um olho centrado em si próprio. Ainda que a crítica seja impiedosa a tudo que existe, ela deve ser no sentido de elevar aquilo que analisamos a um nível superior, como bem coloca Marx, livre de entraves desnecessários aos processos emancipatórios da humanidade. Essa é a função da crítica. Es
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