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Quando o artista pensa a arte



Este texto é uma auto-reflexão crítica sobre o papel da arte e do artista no capitalismo, assim como os desafios teóricos colocados para o artista na busca pela superação de um estado de precariedade que acaba por comprometer a arte produzida assim como todo um conjunto de produtores. O agravamento das tensões sociais também reflete diretamente nessas contradições. Há um problema prático a ser resolvido, que depende de uma teoria crítica da arte capaz de corporificar-se nas lutas e enfrentamentos necessários à superação da arte como mercadoria.

Um homem se humilha
Se castram seu sonho
Seu sonho é sua vida
E vida é trabalho

E sem o seu trabalho
O homem não tem honra
E sem a sua honra
Se morre, se mata
                                                      Gonzaguinha

O que é um dia de trabalho? O capital responde: o dia de trabalho inclui todas as vinte e quatro horas de um dia, deduzindo-se as poucas horas de repouso sem as quais a força de trabalho se recusa terminantemente a voltar a prestar seus serviços. Assim, é evidente que o trabalhador nada mais é, ao longo de toda a sua vida, senão força de trabalho, e portanto todo o seu tempo disponível não é senão tempo de trabalho, a ser dedicado à auto-expansão do capital.
    Karl Marx

Enquanto modo de controle do metabolismo social, o capital apresenta-se, desde a sua origem histórica, como uma relação social que se tornou sistema de controle fetichizado expansionista, incontrolável, incorrigível e insustentável através da contingência da política. No decorrer da sua temporalidade histórica, estas características estruturais da relação-capital, explicitaram-se, com vigor, na medida em que se compôs o sistema mundial produtor de mercadorias.
                                                         Giovanni Alves

Meu principal objetivo neste brevíssimo ensaio é compartilhar algumas reflexões com os companheiros e produtores que produzem algum tipo de expressão artística para que possamos compreender a natureza da sociedade que vivemos e como a arte se relaciona com este meio. Se faz necessário um debate alargado. Algumas questões da ordem pessoal me colocam a pensar essa problemática, o que é algo absolutamente normal para nós que produzimos e lidamos com um conjunto de contradições, mas meu objetivo maior aqui é um debate mais generalizado. A intenção é contribuir para a superação do estado de coisas atual, muito possível, mas que depende de sistemática e profunda reflexão e enfrentamento constante contra as forças que dominam e domesticam a arte e o sujeito moderno. Essas forças se revelam nas redes de mercado e no pensamento conservador.
Existe um enigma a ser resolvido pelos artistas e produtores que diz respeito aos aspectos gerais da cultura e da arte assim como a sua sobrevivência como artista no campo individual. Isso comumente já faz parte da pauta de todos. Não se trata só disso. Esse problema torna-se ainda mais complexo se pensarmos que a resolução de boa parte das contradições (eu diria as principais, como a liberdade de criação e veiculação das produções e condições concretas para a realização dessa arte), só pode ocorrer num estágio avançado das lutas em prol da construção de um novo modelo de sociedade. A arte se emancipa junto com a sociedade e deve andar a galope com outras esferas do campo social disputando cada centímetro. A arte e o seu fazer mudam quando a sociedade acompanha este movimento. As experiências de arte que temos no capitalismo, no entanto, estão aquém do que a arte de fato pode oferecer, ainda que cumpra função importante na socialização e emancipação das pessoas dentro das micro-esferas societárias. Não se trata somente de um paradoxo ou de como saber lidar com o mercado. O mercado tem suas próprias regras, submete-se aquele que necessita sobreviver, não aquele que quer. Neste sentido não há escolha. Com isso, não se quer atestar a irreversibilidade do capitalismo como único sociometabolismo capaz de gerir as relações humanas. Eis parte da complexidade do enigma sobre o qual devemos nos debruçar.
Todo produtor terá que obrigatoriamente optar por qual caminho seguir, ainda que esteja inconsciente disso. Quanto mais crítico for seu pensamento, naturalmente mais obstáculo encontrará. Até mesmo as relações pessoais e familiares podem se tornar um desafio para o artista. E chegará algum momento na vida que o artista se perguntará: é possível continuar fazendo o que faço? O que preciso compreender e fazer para superar qualquer possibilidade de invisibilidade ou esquecimento? E principalmente: como ganhar dinheiro com o que faço? Isso é de fato possível?! O desestímulo que a sociedade burguesa cria contra os artistas e produtores não pode ser suficiente para neutralizá-los. Esse desestímulo é permanente, todos devemos saber disso sem que este seja o maior dos problemas. Essa é uma condição perene, nem por isso irreversível. É sobre isso que refletiremos aqui.
O artista deve pensar a arte não como expressão individualizada que brota dos seus dedos ou neurônios. Pensar a arte integra um movimento intelectual e teórico crítico não se resumindo à mera produção artística de um determinado sujeito. À arte produzida cabe a reflexão sobre aquilo que se faz e seu efeito social. É preciso pensá-la como processo ontológico do ser social confrontando tudo aquilo que nasce como expressão artística com o meio social e as temporalidades históricas. Este, apesar de tudo, é um ensaio livre; uma tarefa que eu mesmo me coloquei como forma de exercitar meu próprio pensamento colocando-o também para jogo expondo as minhas insuficiências e dificuldades para pensar um assunto tão complexo. Os referenciais aqui fazem parte do meu próprio acúmulo como intelectual e artista que pensa a arte e aquilo que faz. Tá tudo junto e misturado.

A arte, elemento imprescindível em qualquer gregariedade humana, é resultado de profunda inquietação e necessidade vital. A arte necessariamente reflete o seu contexto histórico situando-a nas tensões sociais mais gerais. A sua expressão é resultado da condição material de quem a cria. A formação (ou seu capital cultural/educacional) que o sujeito dispõe habilita-o ou não a expressar aquilo que o incomoda. Dependendo das condições técnicas, uma determinada produção pode ser aceita ou não em determinado circuito ou cena. Isso faz com que muito do que se produz nasça como insatisfação e desejo de mudança de uma determinada realidade social, o que caracteriza diversos estilos musicais como o punk e o rap. Os campos artístico e cultural são estrategicamente importantes na afirmação de um determinado conjunto de ideias que servirá a um fim específico.
Há um verdadeiro desprezo pela arte e pela cultura no capitalismo e na sociedade hodierna, materializando-se em desvalorização direta daquilo que se produz e nos piores casos incêndios contra lugares que prezam pela história, cultura e arte, como foi o caso do Museu Nacional há pouco tempo.



Nada disso acontece descolado de um contexto social marcado pelas cisões de classes e os interesses inconciliáveis dessas mesmas classes. Dentro desse cenário contraditório, boa parte das expressões artísticas de alguma forma dialoga com as necessidades e exigências da sociedade de consumo, o que gera uma série de problemas para a arte produzida e para o artista que a produz.
As sociedades capitalistas de uma forma geral têm uma relação bastante utilitária com a arte. Seus museus lotados de pinturas e exposições muitas vezes acompanhados de todo um misticismo que forja uma redoma fetichizando o real significado daquelas expressões; grandes músicos em espetáculos memoráveis; o maravilhoso cinema que encanta espectadores. Todas essas expressões de sucesso escondem outras sem as quais nenhum referencial poderia existir. Essa relação contraditória com a arte é a forma como o mercado encontra para manter sua própria dinâmica reconhecendo e usando tais expressões a seu favor. Essa dinâmica na verdade funciona reconhecendo uns em detrimento de outros, sendo o parâmetro dessa avaliação o valor maior que a arte pode oferecer ao capital: o lucro. O único alvo que o capital tem em mira, como bem coloca Marx, é a busca insaciável e incessante do lucro. Como capitalista, diz Marx, “um homem vem a ter um único impulso vital, a tendência a criar valor e valor excedente, para fazer com que os meios de produção absorvam a maior quantidade possível de valor excedente”.
O capital é uma máquina, ou melhor, um sistema sociometabólico que se autoalimenta indefinidamente num movimento de autoexpansão de caráter predatório, incontrolável e que destina a apenas uma classe o controle da economia e das formas de sociabilidade num suposto movimento de autorregulação do mercado o que inevitavelmente causa profundos danos a uma imensa maioria pelo fato de haver a superexploração do trabalho. O que no final das contas garante os privilégios da burguesia, dos detentores do capital; não confundir com a mera posse de equivalente universal.
O fetiche da mercadoria, onde a prática social mais reiterada é a da compra e da venda, é central nesse processo. O fetiche requer a si as vias pelas quais é processado todo um conjunto de alienação capaz de reorganizar as forças produtivas ao objetivo comum do capital, qual seja, a sua reprodução indefinida. É, portanto, um fenômeno complexo, só possível de ser compreendido em sua essência se observado em suas múltiplas faces de acordo com o seu tempo histórico. Como é um sistema em profunda contradição, opera dialeticamente a partir de certas estruturas, organizações e instituições que supostamente prezam pelo bem comum. Essas estruturas de poder tampouco estão alijadas de um contexto social maior e porque não global. Toda essa rede de poder se afirma num elemento fundamental: a mercadoria.
Segundo Reinaldo Carcanholo,
o fetichismo é mecanismo regulador das relações sociais na sociedade capitalista, permite o funcionamento e a regulação indireta do processo de produção da distribuição e da apropriação por meio do mercado. Além disso, o fetichismo é um fenômeno indispensável na preservação da ordem capitalista. Por meio dele, o conjunto dos seres humanos, em particular os subalternos, acreditam que o mundo é regido por determinações naturais, por leis naturais e imutáveis, e que, portanto, nada podem fazer contra isso. Acreditando-se dominados por forças naturais, tais seres (e todos eles, mas especialmente os subalternos) convertem-se em escravos: “o mundo sempre foi assim e nada há a fazer.” Sua impotência, autoatribuída, torna-se real, concretiza-se.
As escolas, universidades, repartições burocráticas e jurídicas e todo o conjunto (com salvas exceções) dos espaços e territórios da cidade-empresa visam perpetuar a fabricação de um homem dócil, adaptado a uma realidade mercantilizada, privando-o de sua própria liberdade que se acentua no que diz respeito às restrições consolidando as relações de dominação. Oxigenar essa realidade por si só é um ato de coragem e bravura. A fábrica que tudo fetichiza também fetichizou a revolta, espetacularizando-a, transformando muitas vezes o enfrentamento numa via para o suicídio, o que reafirma o espetáculo como norma social.
A emancipação necessária, portanto, está muito além da mera cidadania, visto os seus próprios limites estruturais. Ivo Tonet nos dá uma boa pista a este respeito. Diz o autor:
Este conceito de cidadania não estaria sendo utilizado de forma pouco crítica ou seria ele, efetivamente, aceito como sinônimo de plena liberdade humana? Será de fato livre uma sociedade onde vigem plenamente as liberdades democráticas? Será este tipo de sociedade o horizonte inultrapassável da humanidade, isto é, uma forma de sociabilidade aberta ao contínuo aperfeiçoamento? Não haverá uma confusão entre socialidade e cidadania, sendo a primeira um componente da natureza essencial do ser social e a segunda uma categoria histórica e concretamente datada? Não será a cidadania, embora ressalvando decididamente os seus aspectos positivos e a sua importância na história da humanidade, uma forma de liberdade essencialmente limitada? A crítica radical à cidadania implicaria, necessariamente, uma opção por uma forma autocrática de sociabilidade? Haveria bases razoáveis, isto é, reais, para sustentar a possibilidade de uma forma superior de sociabilidade, radicalmente diferente da forma democrático-cidadã? Qual seria a natureza essencial daquela forma? E quais as consequências que derivariam daí para a prática educativa hoje? (Tonet, Ivo. Educar para a cidadania ou para a liberdade? 2005)
           
 O uso que o mercado faz da arte, portanto, diz respeito do quanto cada expressão ou manifestação artística pode render em ganhos financeiros. Somente a partir daí seu valor social é percebido. Até então, essas produções estão no campo do famigerado underground (que é uma incógnita para muitos) ou do amadorismo, que se define por seu eterno estágio de menoridade sem grande valor.

Como bem coloca Marshall Berman em Aventuras no Marxismo, “o capitalismo é terrível porque fomenta a energia humana, o sentimento espontâneo e o desenvolvimento humano com o único objetivo de esmagá-los, a não ser nos poucos vencedores que ocupam o topo.” É claro que a modernidade trouxe uma série de benefícios incomparavelmente superior as formas de organização social anteriores. A dialética de Marx permite pensar que “o mesmo sistema social que tortura os trabalhadores também os ensina e transforma de tal forma que enquanto sofrem, eles começam a transbordar de energia e ideias”. Essas ideias muitas vezes materializam-se naquilo que genericamente denominamos “arte”.


O artista não é só aquele que produz uma determinada expressão, mas o que reflete sobre a condição daquilo que se cria; das contradições em torno da sua criação e de como isso se relaciona com o meio e quais os resultados disso tudo na sua vida prática.
Pensemos a produção artística no contemporâneo. Essas forças criativas estão absolutamente relacionadas com o contraditório contexto que as cercam sofrendo e reagindo de acordo com a correlação de forças e o momento histórico atestando muitas vezes a existência ou permanência de determinada expressão. Se para muitos o termo “artista” parece um tanto quanto banal ou algo genérico tipo um balaio de gatos, para nós deve ser discutido como algo necessário à própria funcionalidade das sociedades. O artista é aquele que cria e oferece ao público algo mais que o simples consumo de um determinado produto/mercadoria. A arte produzida expressa a materialidade de um conjunto de elementos praticados e organizados de forma a dar sentido a uma determinada concepção, que ao ter contato com os demais gera reações diversas produzindo outros comportamentos e subjetividades o que escapa ao controle.
            O incrível retrocesso filosófico e político que se vive hoje no Brasil e no mundo, recoloca a arte como campo privilegiado de disputa. Não a toa, os artistas de grande peso e os chamados “globais” reforçam campanhas, apresentam-se em ocupações e nas manifestações são vozes sempre ativas. A crescente fascistização das sociedades capitalistas cada qual à sua maneira, nos impede de pensar a arte como expressão meramente subjetiva sem um aparente compromisso social. É um erro crasso pensar a produção artística apartado das relações de poder. Inclusive no seu interior a arte ou as relações que se estabelecem a partir dela reproduzem estruturas muito parecidas com o mundo do capital. Nesses tempos, as palavras juntaram-se com um único objetivo: nada dizer. Por isso, os significados, que são altamente duvidosos, entraram em greve diante da inércia de quem as proliferam. Aqueles que falam também nada dizem. Mas toda greve tem uma função objetiva. No caso desta é parar a produção dos sentidos, principalmente o histórico. O conservadorismo vê na maioria das expressões artísticas uma degeneração, por não reproduzir velhas práticas e visões desafiando, por exemplo, a sexualidade normativa.




Há uma completa histeria social colocada o que vem gerando enorme confusão alimentando, por sua vez, as disputas eleitorais que se valem de tudo aquilo que vem a reforçar seus propósitos políticos particulares. O jogo das eleições mostra o quão baixo é o entendimento do que vem a ser a política e, por conseguinte a coisa pública. A escolha entre candidatos que se diferenciam em aspectos muito específicos em seus programas é o objetivo final do cidadão que é convocado de tempos em tempos a cumprir o ritual estabelecido pela democracia representativa burguesa. A mídia burguesa torna-se o principal elemento e força de poder a partir dessa perspectiva de democracia. Para que a escolha seja feita de forma democrática o eleitor é bombardeado diariamente por pesquisas de intenção de voto, dados, números e em eventuais oportunidades as disputas internas são apresentadas na forma de enfrentamento entre candidatos sendo a síntese final produzida por um corpo especializado de jornalistas e comentaristas políticos.
Os enfrentamentos políticos servem em última instância a desestabilizar de alguma forma o candidato oponente e ver-se assim na oportunidade de avançar na corrida eleitoral. Os debates televisivos são estabelecidos obviamente entre candidatos enquanto o eleitor assiste e julga ao final sua escolha entre a oferta que se apresenta. É a mídia que estabelece o tempo de fala, os temas e as regras do “debate”. Todo o formato dessas disputas proporciona tudo menos o debate político onde as teses possam ser apresentadas, analisadas e discutidas de forma pormenorizada. É impossível adentrar em questões que sejam de fato pertinentes a uma avaliação profunda da realidade da forma como a mídia e a política eleitoral tentam nos convencer. O exercício da democracia direta, da participação efetiva da população nos rumos da política e seu caráter de classe é não só evitado, mas combatido e por fim criminalizado.
Não faz parte dessa democracia envolver a população nas decisões. O exercício da política torna-se uso exclusivo de políticos profissionais e suas cúpulas enquanto a democracia é exercida pela mídia. É a mídia que apresenta as questões. É ela que depois das eleições vai cobrar que as supostas promessas e compromissos dos governantes sejam cumpridas. É ela que denuncia, investiga e consuma os fatos. É ela que interpreta. O espectador é informado.
Para Jacques Ranciére, “o bom governo democrático é o que é capaz de controlar um mal cujo simples nome é ‘vida democrática’”. A democracia, portanto, “é má quando se deixa corromper por uma sociedade democrática que quer que todos sejam iguais e que se respeitem todas as diferenças.” Não aceitar o jogo democrático representativo é não só ir na contramão mas ser um criminoso, uma ameaça, um problema a ser resolvido pelo Estado através da força coercitiva. A população serve no máximo para apoiar ou não um determinado candidato não se vendo na função social de produzir seus próprios métodos de ação, prioridades e formas de atuação em sociedade.
Enfrentar o modelo vigente passa necessariamente em contestar a democracia e o exercício limitado de suas funções. Qual é a renúncia (ou o conjunto de renúncias) que se apresenta quando o eleitor-cidadão é convocado, através de uma série de mecanismos coercitivos legais ou não, a exercer o seu poder (ou papel social) de forma pontual através do voto? Qual o regime político se fortalece quando a prática do poder é negada quando este se faz valer através da luta popular?
Eleger é não só abrir mão do próprio poder e do exercício da política em seu âmbito democrático real, material, participativo, coletivo. Eleger garante não só a manutenção dos Estados e toda política liberal de mercado. Eleger é também uma forma de naturalizar um conjunto de valores e ações coercitivas e opressivas inviabilizando todo e qualquer avanço no que diz respeito a qualquer pretensão do exercício da democracia como poder popular participativo com poder de decisão. Eleger, em última instância, tem como função social manter as ordens de poder hegemônico da forma como aí está, ou seja, nas mãos de uma classe dominante. Pensar tal questão longe da luta de classe é uma vitória da democracia representativa que, segundo seu discurso e teoria, abarca o interesse geral através da representatividade, coisa que de fato é impossível. É impossível eu representar o seu interesse e vice-versa. A figura do representante é a figura que apazigua os conflitos sociais e que enxerga na representatividade uma suposta interatividade harmônica entre as classes. Para tal o âmbito da política privada é o terreno que assegura a sociedade enquanto um mercado e a política como moeda de troca.
Mais uma vez dialogando com Ranciére em seu novo livro “ódio a democracia”, sobre a questão da política privada, o autor afirma que este sistema “consiste em orientar as febris energias ativadas na cena pública através de outras metas, em desviá-las na busca da prosperidade material, das felicidades privadas e dos laços de sociedade.” Como conseqüência há “diminuição das energias políticas excessivas favorecendo a busca da felicidade individual”. Com isso se fortalece os modelos de relação contratual, ponto-chave da sociedade liberal, antagônica ao poder enquanto instância popular, ativa, auto-representativa. Eleger, por fim, corrobora todo o sistema de condução através de relações de domínio. A eleição como farsa e o espetáculo como democracia são elementos centrais para pensar as relações de domínio que desde a modernidade se constituem como regra e único caminho possível ao exercício do poder.
Coisas que antes eram chocantes se materializam na vida cotidiana banal nos colocando diante da barbárie em sua forma crua. Aqui precisamos ressaltar sem sombra de dúvidas todos os mecanismos e artimanhas que a direita vem utilizando para de alguma forma sobressair-se nas pesquisas na busca por legitimar-se através do processo eleitoral. Uma dessas artimanhas é não só cooptar artistas que buscam cegamente por visibilidade, mas converter a arte na sua própria negação, como podemos notar em manifestações artísticas conservadoras.

Um dos aspectos importantes da singularidade da arte é pensar as condições para sua criação. Que condições determinam a liberdade de criação? Como bem sabemos o conceito de liberdade no capitalismo tardio está diretamente ligado à condição material, financeira e espiritual disponíveis para a criação artística. A grande maioria dos produtores, mesmo cultivando no seu interior práticas de liberdade, cedo ou tarde encontrará obstáculos que incidirão no sentido explícito de (re)direcionar a produção para um objetivo antagônico ao do produtor.


Um exemplo disso vem se dando, por exemplo, com o rap. Estilo musical característico e pertencente às lutas dos negros periféricos, tal expressão incrivelmente também ganhou sua versão às avessas (ou simplesmente conservadora). Em 2015, diversos MC´s, entre eles MC Maomé do grupo Cone Crew Diretoria, expressaram suas insatisfações contra a desgastada corrupção brasileira numa chamada para o Vem Pra Rua que tem nos bastidores os lobos do MBL (Movimento Brasil Livre). Mas como isso foi possível? Na minha dissertação de mestrado trabalhei com a questão fulcral da mercantilização do rap tomando como base Rio de Janeiro e São Paulo. Esse processo de mercantilização abriu as portas para essa anomalia que agora vemos e temos de lidar.
Observando o enorme impacto social do rap principalmente entre a juventude, primeiramente a direita (e principalmente a burguesia e demais frações da classe dominante) desqualificou-o como cultura de bacilos, associando-o a um suposto retrocesso moral e político muito por conta da virulência do rap contra os “boys” (adjetivo genérico para se referir às classes dominantes). Já num segundo momento e a partir de uma esterilização da cultura negra periférica ofertada aos meios de massa (que transformou seus agentes em pequenos empresários), o rap foi incorporado às necessidades e pautas defendidas pela direita. Nesse ponto, a liberdade de criação simplesmente não existe. Ela foi tragada pela noção individualista e liberal de “liberdade de expressão”, muito defendida entre aqueles que proliferam desinformação em colocações e práticas proto-fascistas, como foi o caso dos rappers amigos do MBL.
A arte cooptada, capturada pelo modo de produção capitalista é a mais limitada das artes, expressão materializada da miséria hodierna. Esse jogo de vale-tudo compromete integralmente o caráter da arte produzida. As condições para a liberdade de criação, portanto, são possíveis a partir da autonomia intelectual, política e econômica do artista. Do contrário, sempre estará suscetível às intempéries de forças contra-revolucionárias que buscarão incansavelmente nortear a música, o cinema, o teatro...




Na verdade, a disputa eleitoral entre a direita e suas variantes e a esquerda parlamentar é um jogo de vale-tudo. Essa histeria social vem sendo justificada como um processo emancipatório, onde essa emancipação se dá pelo abandono completo do projeto político da esquerda simbolizado genérica e majoritariamente pelo PT. O serviço que a direita vem conseguindo ter êxito é de limpar e polir para assim tornar aceitável candidatos como Jair Bolsonaro que somente a partir de trabalho como este (que vale lembrar requer suntuosa quantidade de dinheiro) é capaz de tornar-se uma figura pública tragável.
A escolha por Bolsonaro representa a nova revolta contra o status quo, que na visão da direita está diretamente representado no PT, com chance real de instauração de um regime comunista ignorando por completo as contradições próprias do capital que resulta obviamente no acirramento das tensões sociais e que essa esquerda que tanto temem não passa de um espantalho tosco incapaz de qualquer compromisso com o socialismo e a emancipação dos operários. Partidos políticos de esquerda na prática não ultrapassam os limites já largamente experimentados por governos social democratas. Não é minha intenção aprofundar nesse tema aqui, mas recomendo a leitura de Adam Przeworski.
Para os conservadores, a escola, por exemplo, não possui autonomia devendo estar subordinada à família. Segundo eles, antes de ser um cidadão, existe o indivíduo que originalmente advém da família nuclear. Isso faz com que a moral familiar (quase sempre organizada de forma patriarcal autoritária), incida sobre a formação de mundo do sujeito, que segundo a moral conservadora deve retornar ao seu núcleo de origem evitando qualquer tipo de rompimento brusco como forma de conservar as relações de dominação tal como aí está. Se pudermos desenhar, seria a metáfora da cobra comendo o próprio rabo. O reflexo disso na população é nefasto, gerando um estranhamento e negação de educação sexual ou a simples inclusão de matérias como África no currículo, algo necessário ao próprio neoliberalismo.

Dessa forma, a direita consegue a maior das façanhas: inverter o sentido histórico trocando a ordem das prioridades beneficiando os mesmos que antes dominavam a economia e a política. Essa incrível manobra engendrada por golpes produz um rearranjo social através da contínua ameaça da iminência de um caos social, que na prática não altera o estado de coisas, apenas simulando esforços contra aquilo que considera o mal maior: a esquerda/PT; quando na verdade isso faz parte de um movimento próprio do capital como forma de garantir sua sobrevivência não abrindo mão de sua contínua expansão. Um ponto importante é que esses antagonismos não se restringem à vida parlamentar burguesa, mas reflete as tensões colocadas no campo social, que nesse momento encontra-se em altas temperaturas. Por mais que a vida pública, cotidiana e virtual esteja voltada aos anseios da democracia burguesa, é aí que se abrem possibilidades de recolocar as lutas em seus eixos de classe reorientando a revolta social contra o verdadeiro inimigo


A arte, no capitalismo, tem uma função muito específica. Em primeiro lugar, ela só é reconhecida como arte não meramente por existir como expressão humana que guarda igual valor como as demais expressões produzidas restando uma relação utilitária e fetichista. Isso asfixia a arte criando pequenos guetos de resistência. Em segundo lugar, as relações, de um modo geral, são mediadas por interesses. Nas sociedades capitalistas este interesse é notadamente relacionado ao mercado e ao capital. As relações são atravessadas pelo trabalho por sua vez fortemente vinculado à garantia da produção e consumo mercantil. O trabalho apenas não basta. Ele deve servir à produção ininterrupta de mercadorias que o próprio trabalhador é impedido de consumir. A arte, portanto, torna-se mercadoria como qualquer outro produto a ser consumido.
Em terceiro lugar, o trabalho quando não serve aos interesses centrais do capital é visto como algo menor ou simplesmente um trabalho improdutivo e, portanto, inútil. Isso faz com que a parcela que não entra no hall do consumo passe inevitavelmente a compor uma espécie de limbo da produção cada vez mais distante da possibilidade de garantir a sua própria sobrevivência. Este limbo também é consequência de segmentos da cena mais abastados que funcionam cooptando e neutralizando setores mais combativos, principalmente. Por isso, a arte no capitalismo não tem uma utilidade qualquer.
Assim, tudo o que houver de mais subversivo é visto como degenerado, rústico ou arcaico neutralizando a singularidade e aquilo que de mais potente há na produção. Esse crivo milimetricamente arranjado passa a ordenar e tão logo determinar o que deve e o que não deve ser visto e consumido corroborando o esquecimento, construindo limbos auto-degenerativos retirando toda responsabilidade do mercado na construção dessas prisões.
Arte é trabalho, e isso tem forte significado. Marx, diz Berman, “vê o trabalho como uma fonte fundamental de sentido, dignidade e autodesenvolvimento para o homem moderno”. O trabalho dá sentido à vida, pois transforma e integra o produtor numa relação de totalidade onde seus esforços inferem diretamente no campo social. No entanto,
“o trabalhador mortifica seu corpo e arruína sua mente, só sentindo-se ele mesmo fora de seu trabalho, e quando está em seu trabalho parece estar fora de si mesmo. Ele só se sente em casa quando não está trabalhando e, quando está trabalhando, nunca se sente em casa. Seu trabalho, portanto, não é livre, mas coagido. É trabalho forçado.” (Marx)

Ao estancar este processo, por qualquer que seja o motivo, há um duplo prejuízo. Em primeiro lugar para o próprio artista, que não disporá mais da sua principal ferramenta; e em segundo lugar para a sociedade, que carecerá de maiores contribuições na produção da cultura facilitando o controle das redes de mercado.
O trabalho é o elemento fundamental de qualquer sociedade. Na sociedade capitalista ele serve como forma primária da própria alienação humana, pois quando a produção está distanciada do produtor (em todos os sentidos), não há como pensá-lo para além da mera escravidão. A alienação, segundo Giovanni Alves, “é o ato/processo histórico de perda/despossessão dos meios de produção/controle da vida social que constitui a condição sócio-existencial de estranhamento”. O artista vive o paradoxo entre sobreviver no capitalismo e fazer arte e até que se encontre uma solução para isso há um inevitável desgaste permanente que fará parte de todo esse processo. Contarei aqui um breve episódio.
            Na fila do desemprego as pessoas estão desesperadas. Falam pelos cotovelos. Riem para não chorar. Eles só querem um trabalho. Estão desesperados por isso. Topam qualquer coisa. Na entrevista, há vagas para prevenção de perdas. A mulher do RH diz que tem que gostar do cargo. É preciso ter o gosto pela repressão, mandar prender quem profanar as mercadorias. Aquele que antes estava desempregado, agora reprime, denuncia e castiga o que nada tem e precisa promover pequenos furtos para sobreviver. A lógica do capital é perversa. Ela coloca os trabalhadores uns contra os outros e chamam isso de ética. Assim, o trabalhador passa a defender os interesses dos patrões como se fossem os seus próprios.
Há também vagas para outras funções e me candidatei a uma dessas. Os desempregados entram numa sala, preenchem uma ficha e fazem uma prova de português e matemática para checar se o sujeito compreende coisas básicas. Entreguei a prova. A mulher do RH corrigiu e me chamou. Ela disse que eu tinha ido bem. Tirei 9 em matemática e 8 em português, mas de acordo com os critérios da empresa eu não estava apto a trabalhar ali. Perguntei o motivo e ela respondeu novamente que era o critério da empresa.
O mercado de uma forma geral quer o sujeito quanto mais subalternizado melhor. Quanto mais instrução e formação se têm, menor a probabilidade de ser contratado em cargos fora da nossa área. O critério da empresa, no caso, é estar perfeitamente adaptado e ser obediente, afável e não atrapalhar o bom funcionamento. As pessoas desempregadas na sala aguardam ansiosamente por uma longa jornada de trabalho e um salário mínimo. A mulher do RH disse que não dão dinheiro para a refeição, mas que na salinha tem um microondas que dá pra esquentar a marmita. Pode levar a marmita e esquentar lá sim. Mas a comida é o próprio funcionário que paga.
A exploração, desde que intermediada por um parco salário, é absolutamente tolerável. A exploração é a única alternativa possível ao exército de mão-de-obra que sobra aos montes; é o mal menor. Imagina o que é não ter uma casa ou morar de aluguel e ter cinco aluguéis atrasados ou algo assim. A grande maioria nem casa têm, nem emprego formal com salário o que dirá direitos. De acordo com que o Estado suprime direitos básicos sente-se os reflexos disso no quanto o trabalhador tem que se curvar diante das poucas “oportunidades” que lhe aparecem. Chegou-se ao ponto de ser um privilégio ser explorado. Enfim, é necessário ser obediente e agradecido, seguir o ordenamento, ter o mínimo de qualificação possível e estar disposto ao inevitável atropelo que será submetido. É nisso que o capital se ancora e tornando-se hegemônico ainda que provisoriamente.
A falta de uma perspectiva ou projeto político de fato antagônico ao capitalismo faz com que este tempo provisório torne-se demasiadamente longo, perene, naturalizando as opressões criando alternativas inofensivas incapazes de fazer frente ao processo ininterrupto de avanço contumaz das formas de mercado balizadas no fetiche da mercadoria. Por mais que não seja possível para a grande maioria dos artistas viver apartado dessas relações subalternizantes, é necessário pensar sempre alternativas que garanta a sobrevivência básica do sujeito que produz. Quando essa relação se agrava há reflexos na saúde mental.
Na fila da psiquiatria há um exército de doentes e inválidos. Alguns aguardam ansiosamente a morte. Zumbis dopados sem qualquer perspectiva temporal para além do mero presente. São almas presentificadas no eterno agora. Começam a ficar doentes muitas vezes cedo. Uns não têm pais ou família; desamparados, saem por aí a morrer cedo nas ruas. A polícia mata, a milícia mata, os adversários matam. Há esquizofrênicos e doentes de toda ordem. Há pessoas que sequer saem de casa para evitar os encontros. Têm medo. A sociedade na verdade está doente. Há os que não suportam e se matam e que sequer são lembrados. Não podem ser lembrados. O suicídio é um problema real, assustador, tenebroso. São vidas despedaçadas, estilhaçadas, esvaziadas. A sociedade dá valor aos úteis. E quem são os úteis? E o que vem a ser utilidade nesta sociedade? Quem determina? Os úteis são os que de alguma forma colaboram para a manutenção das coisas, do funcionamento da sociedade, das relações de mercado, de poder e dominação. Os úteis trabalham inclusive para dar conta de administrar os inválidos. Por isso, estes que trabalham à exaustão em pouco tempo tornar-se-ão também inúteis, inválidos. Essas condições são experimentadas por muitos artistas que não conseguem sequer sobreviver daquilo que produzem, sendo essa a realidade de muitos casos.
A pressão social que se impõe sobre o artista não é diferente de qualquer outro ser humano que vive em sociedade. No entanto, são nas relações de trabalho que observamos uma detalhada política que determina aquilo que deve existir ou não, assim como o que pode ou não ser veiculado e comercializado, quem pode ou não aparecer e ter destaque, o que pode e o que não pode ser falado e por fim, aquilo que é e o que não é arte. Bom, tudo isso são questões colocadas ao artista até seus últimos dias.
Outro problema se coloca antes mesmo do artista se deparar com as subalternas relações de mercado. A família nuclear pequeno burguesa que tem horror que um dos seus membros possa, por exemplo, cogitar ser músico. O sujeito que muitas vezes é criado num ambiente de profusão cultural, mas que existe no máximo para desenvolver certas percepções ou sensibilidades é frequentemente estigmatizado caso opte por relacionar-se mais intimamente com este universo que ele consumiu a vida toda em casa. Nesse ponto, famílias pequeno burguesas, progressistas agem da mesma forma: usam o discurso de que estão fazendo o melhor para os seus filhos castrando a autonomia de sua prole. As opções que sobram são as que vão determinar a vida deste sujeito, como advocacia, engenharia, medicina, fazer concurso, etc, vistos pela sociedade como profissões promissoras que certamente garantirão o sucesso financeiro deste indivíduo. Dedicar-se inteiramente a arte é de fato algo muito distante para a grande maioria.
A família força o sujeito a mudar totalmente seus planos, adiando sem perspectiva de concretizar seu maior desejo trocando uma frustração por outra. Aquele que opta por insistir e acreditar no que produz e ainda não conseguiu nenhum benefício financeiro ou popularidade e prestígio, é automaticamente categorizado como fracassado, incapaz e até mesmo vagabundo e preguiçoso, visto, dentro dessa lógica, como alguém irracional incapaz de pensar por si próprio e que permanece num eterno estado de adolescência sendo alguém que não pode ser levado a sério necessitando sempre ser conduzido por meio de relações altamente hierarquizadas, portanto, incontrovertível.
Essa brusca forma de controle é a pedagogia encontrada para evitar que o sujeito “saia dos trilhos”, que na verdade serve como forma primária de manutenção de eterno estado de subserviência por parte dos filhos. Essa é a norma e ela nos exige compreensão. Não está aqui em questão modificar as relações familiares que funciona tal qual pequenos Estados onde há o subalterno e as autoridades representadas pelos pais e todos sabemos que enfrentar pai e mãe (ou tios e tias) está fora da ordem das possibilidades. Não há argumento sociológico capaz de modificar o pensamento deles, sendo a transformação dessa mentalidade possível somente num estágio avançado das lutas contra toda forma de dominação.
            A família, de uma forma geral, reproduz no seu interior todas as contradições da sociedade de classes. Ela é uma instituição criada para assegurar o funcionamento geral da sociedade capitalista. Recomendo a leitura do livro de Engels, “A origem da família, do estado e da propriedade privada” neste caso. Ela, a família, é apenas a primeira etapa. É claro que a família é aquela que dá afeto e todas as condições necessárias à formação de um membro, mas tão logo ela mostra sua face autoritária, decisiva e dominadora sobre a vida da sua prole. A forma natural de se livrar disso na sociedade capitalista é ter autonomia financeira, pois só autonomia intelectual nada quer dizer. Há os que conseguem isso mais rápido, outros levam mais tempo e há também toda uma leva que nunca sai dessa condição por diversos motivos.
            A crise do artista é também a crise de toda sociedade. A classe artística não é nada homogênea e reproduz no seu interior, tal como diversos outros segmentos e estruturas societárias, as mesmas contradições da sociedade de classes. Vive suas pequenas misérias e engalfinham-se em competititvidades tenebrosas. De uma forma geral, os artistas na medida em que expressam-se através da arte aproveitando seus espaços de fala, demonstram incrível incapacidade crítica com relação aos principais problemas sociais. O protesto, na medida em que ativa os ânimos, estanca sua raiva na sua própria incapacidade de modificar as relações superando suas contradições. Vejamos, por exemplo, o discurso do Planet Hemp em show recente em Curitiba quando BNegão e Marcelo D2 protestaram contra a possibilidade e eleger Jair Bolsonaro presidente do Brasil:
“É o seguinte, tá a vinte e poucos anos na vida pública, fala que é novo... eu moro no Rio de Janeiro, não sei como é aqui. A gente mora no Rio de Janeiro e o cara não fez nada pela segurança do Rio de Janeiro em nenhum momento. Vinte e poucos anos e nada! Nenhuma linha. Ele quer fazer pela segurança do Brasil. Ele nunca falou sobre a corrupção na polícia militar, é um órgão dos mais corruptos do Brasil e do mundo. O cara quer ter carta branca pra matar favelado, pra matar quem tiver contra as paradas que o cara acredita. Nego vai ter carta branca e não vai ser julgado. Então por essas e outras que eu digo foda-se esse filho da puta, abram a mente de quem está do lado independente de esquerda ou direita abram a mente das pessoas. Esse filho da puta não pode passar. A parada é essa!” (BNegão)
           
A denúncia promovida pelos artistas guarda sua importância, no entanto, tem seus limites claros. O Planet Hemp, por exemplo, sempre buscou denunciar a truculência policial e buscou de alguma forma se contrapor a isso. A resolução de um problema como este, o avanço do fascismo, no entanto escapa, tornando a ameaça iminente algo possível de ser resolvido fundamentalmente através de um novo processo eleitoral, supostamente mais democrático e que recuse por um bom senso a ser aflorado nas pessoas um governo de extrema-direita. A conscientização sobre a real gravidade da situação passa batida pela quase totalidade dos artistas progressistas, limitados por uma reflexão institucionalizada apartado das relações de classe. BNegão, como muitos outros artistas, acreditam que se contrapor ao fascismo se resume em convencer um número máximo de pessoas a votar num candidato de “esquerda”, o que de fato não modificará em absolutamente nada as contradições sociais, tampouco representará qualquer ameaça contra o fascismo. Pelo contrário, os progressistas são responsáveis pela manutenção do fascismo. Independente de Bolsonaro ganhar as eleições ou não, a ameaça fascista não se resume a uma possível eleição de candidatos dessa estirpe. Ora, no Estado o que mais há são forças fascistas dispostas nas mais variadas formas de poder a exercer o contínuo retrocesso através da violência direta contra trabalhadores. A denúncia, neste caso, faz parte do espetáculo.
A despolitização da arte tornou o artista descartável e inofensivo. Ele obedece aos ordenamentos em troca de algum diferencial, como status, contratos ou visibilidade. O cinema, o teatro, mas principalmente a música esvazia-se cada vez mais e é vendida a preço de banana. Os novos nomes da música popular, da MPB ao rap, o que impera é a miséria. São bons esteticamente, tocam seus instrumentos maravilhosamente bem, mas o sumo é pautado por uma arte fundamentalmente capitalista e uma mentalidade pequeno burguesa, o que não necessariamente invalida suas expressões e produções tendo apenas esta um caráter adverso a de uma arte emancipatória. E as relações também norteiam-se por este parâmetro. O lugar da arte e do artista parece que se tornou o lugar de poucos que concentram seus pequenos poderes frequentando ambientes badalados com outros grandes nomes da arte que reforçam seus pequenos núcleos com alguns poucos selecionados contemplados. O hall dos simulacros muito bem frequentado é a nova cara do espetáculo. Quem não quer estar lá? A função dessa arte hoje por mais diversa que possa parecer confina-se na busca pela sobrevivência através da competição, portanto, quem chega lá são os merecedores e os mais competentes, de acordo com parâmetros construídos para um fim muitíssimo específico.
Superar essas relações pautadas pelo utilitarismo requer construir novas relações sobretudo horizontais. As parcerias são parte essencial para o melhor desenvolvimento e aprimoramento da arte. A genialidade de alguns é tão excêntrica que não devemos trabalhar com essa perspectiva. A maioria de nós depende de estudo e investigação sistemática nos diversos campos da arte que se desdobra em vários outros campos do conhecimento como o histórico e o filosófico. A suposta genialidade de alguns funciona como pensamento natural mitificado que serve para manter um certo status quo excluindo boa parte dos “comuns” e artistas desconhecidos. Para muitos torna-se obsessivo ocupar o hall dos artistas excepcionais, daquele lugar ocupado por poucos como se neste hall de simulacros coubesse apenas os escolhidos que tornar-se-ão heróis imortais venerados por toda eternidade.
É nesse movimento que a arte e seu desenvolvimento se estanca, se encolhe e adapta-se às exigências do mercado de uma forma geral. Por isso, o comum na verdade é a miséria criativa e intelectual, os padrões e clichês normativos cinicamente vendidos como novidade. O artista é um trabalhador como qualquer outro; mas é um trabalhador que trabalha com os afetos e com a criação, o desenvolvimento de linguagens, texturas, abordagens e estéticas e que produz uma expressão figurativa da realidade como bem coloca o professor Nildo Viana.
As parcerias surgem para o artista como elemento imprescindível ao desenvolvimento da sua arte e para o desenvolvimento também das relações sociais. Mas, o que são as parcerias e como se formam? É claro que em modelos de mercado as parcerias podem existir até como forma de impulsionar um determinado artista ainda invisibilizado funcionando também como apadrinhamento, como é o caso de muitos músicos. Mas não é disso que falo aqui. Por parceria entendo a participação equânime/horizontal nas formas de fazer e produzir arte. Na verdade só é possível haver parceria dentro dessas condições. Parceria não é o mesmo que prestação de um determinado serviço em troca de um determinado valor de dinheiro ou qualquer outra relação de trabalho alienada onde uma das partes esteja em profunda desvantagem com relação ao outro. As pessoas geralmente tendem a chamar parceria tudo aquilo que é feito conjuntamente ignorando as condições materiais e imateriais, objetivas e subjetivas daquilo que é produzido e dos produtores envolvidos. É claro que equalizar as condições dos diferentes produtores envolvidos não pode ser levado ao pé da letra. Os artistas e produtores em geral têm diferentes acúmulos, experiências e, claro, condição financeira distinta um do outro.
Mas ainda assim, as parcerias podem e devem acontecer, pois ela é uma arma eficaz contra a invisibilidade e precariedade que estão sujeitos os livre-produtores. As parcerias se formam quando há um interesse verdadeiramente comum entre as partes envolvidas a ponto de contemplar os interesses, perspectivas e intenções de cada um. Forjar parcerias dentro de um cenário escasso altamente competitivo ajuda não só a integrar os produtores, mas a enfrentar um forte inimigo: o mercado e suas formas de monopólio.
A equalização das relações abrem condições reais às parcerias não bastando somente boas intenções. Essa equalização se dá a partir de trocas onde se ajuda a forjar um determinado cabedal de informação e conhecimentos onde exista a carência. Não é possível parceria onde haja exploração ou um certo aproveitamento de um sobre o outro. Isso o mercado já faz com muito mais habilidade e proeza dissimulando suas reais intenções. Nas parcerias o crescimento coletivo é o resultado dos múltiplos esforços envolvidos, por isso, a capitalização é também quanto mais horizontal for possível. Ou seja, os ganhos são também da ordem coletiva. Parcerias, portanto, são arranjos eticamente equilibrados onde a competição é deixada de lado em prol do crescimento individual e coletiva do(s) produtor(es) e da arte produzida, o que guarda sua importância social.








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