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Pode um policial ser antifascista? Uma crítica às forças contra-insurgentes

 


"A melhor auxiliar da polícia sempre será a imprudência dos revolucionários." Victor Serge


É inegável que as forças reacionárias estão a todo vapor numa ofensiva calculista e altamente organizada contra as forças ou possíveis forças emancipatórias. Seria demasiadamente ingênuo afirmar que se trata aqui de uma espécie de novidade. Não há ineditismo nenhum nesse movimento que tem se mostrado histórico e contingente. Durante a II Guerra Mundial Lukács já afirmava o seguinte:

“O recuo diante do “baixo nível” de Hitler para os “altos” pensadores como Spengler, Heidegger ou Nietzche é, logo, tanto do ponto de vista filosófico como do político, um recuo estratégico, uma forma de se distanciar da perseguição do inimigo, para reagrupar as fileiras da reação, de modo que – em condições mais favoráveis – a mais alta reação possa empreender uma nova ofensiva, “aprimorada” metodologicamente.” (Georg, Lukács. A Destruição da Razão, p. 13)

           

No caso do Brasil, mais propriamente dito, também sequer podemos alegar qualquer ineditismo da presença de tais forças reacionárias sempre imperantes e contundentes no que diz respeito à defesa intransigente dos seus interesses. O Brasil se funda desde sua gênese ancorado no aniquilamento das tradições locais exterminando não só os corpos, mas as ideias, costumes e concepções de mundo de populações inteiras de índios e negros como forma de esvaziar suas culturas neutralizando suas expressões primordiais. Nada disso ocorre ao acaso, mas desde muito tem, sobretudo fundamentação teórica e filosófica acompanhando os percursos do irracionalismo moderno como expõe Lukács em sua monumental obra “A Destruição da Razão”. Como o próprio filósofo escreve, “não existe visão de mundo inocente.”

            Dando um salto enorme para o nosso limitado tempo, mais especificamente de 2013 em diante, o fenômeno do fascismo e do irracionalismo moderno vem sendo recorrentemente mal interpretado sob uma ótica precária e especulativa que não consegue lançar seus olhares para além do recorte temporal das recentes manifestações populares que nos apontam caminhos, mas não necessariamente conclusões definitivas sobre este importante fenômeno que de passageiro nada tem. O fascismo representa em última instância o projeto de sociedade burguês, os anseios e lutas perpetradas pelas classes dominantes.

            O debate sobre o fascismo apesar de tudo tornou-se cansativamente presente principalmente na internet, o que poderia contradizer nossa afirmação inicial de que o fenômeno ainda é demasiadamente mal compreendido e precariamente interpretado. No entanto, boa parte desses estudos surge como forma de direcionar (ou confundir) os setores historicamente vitimizados pelo fascismo apontando ironicamente a uma defesa da reação burguesa quase sempre atentando para a importância de uma ampla frente como forma de somar forças contra um inimigo comum como se historicamente o liberalismo não representasse uma ameaça permanente contra os trabalhadores. Boa parte dessas orientações nasce de uma intelectualidade comprometida com determinadas organizações burocráticas como partidos e sindicatos que não têm outra orientação a não ser abster-se da luta contra o capitalismo. Tais perspectivas não levam em consideração as próprias contradições inerentes a esses agrupamentos que de tão amplas encampam pautas bastante incomuns. É o caso, por exemplo, de um pífio setor da polícia civil autodenominado antifascista. Não colocaremos este termo entre aspas nesse caso por entendermos que são justamente as disputas pelos termos que consolidam determinados significados.

            Tomemos como exemplo um dos principais protagonistas desse setor: Orlando Zaccone, delegado de polícia civil no Estado do Rio de Janeiro. Analisarei aqui sua mais recente live ocorrida no dia 30 de maio de 2021 no canal Autonomia Literária em que o delegado expõe de maneira clara e sucinta suas teses e proposições assim como os caminhos necessários para uma mudança no modelo de segurança pública e porquê ele entende ser imprescindível que haja um setor na policia disposta a lutar por esse conjunto de pautas.

            Já de antemão gostaria de ressaltar aqui que o debate se dá fundamentalmente no campo das ideias e que, obviamente, também resvala no campo social. Não se trata aqui em hipótese alguma de deslegitimar a luta desse setor ou de imputar a um determinado indivíduo todos os problemas concernentes às contradições da sociedade de classes, mas sim tratar o tema com seriedade almejando possibilidades de uma real superação das múltiplas opressões existentes na sociedade de capitalista. Não tenho dúvidas neste caso que Zaccone representa algum tipo de exceção dentro de uma instituição notadamente genocida e comprometida com as mazelas de um sistema altamente opressor. Tampouco se trata aqui de manter uma espécie de “debate civilizado” com opositores de um processo revolucionário, já que este minúsculo setor da polícia civil jamais encamparia um enfrentamento real e armado contra a própria polícia ou contra o exército. Seu papel na conjuntura política é agrupar forças legalistas igualmente comprometidos com o estado burguês e com o capital.

            Zaccone, assim como todo esse setor progressista, parte do pressuposto de que para uma mudança nas relações entre polícia e cidadãos é necessário toda uma reformulação do que é e para que serve a polícia e o policial e não necessariamente a superação do modelo sócio-econômico vigente. Suas reflexões se restringem a uma reforma do estado e das polícias. Para isso, objeta que a categoria trabalho deva ser estendida aos agentes da repressão, que passam por processos de precarização, estranhamento ou alienação de suas forças sem perceber que também estão imbuídos de procedimentos parecidos a todos os trabalhadores. Reconhecer o policial como um trabalhador ajudaria nessa aproximação até o ponto de trabalhadores e policiais poderem encampar lutas em conjunto fortalecendo suas frentes. Este debate obviamente é feito pelo delegado pulando processos, etapas e conceituações importantes que deveriam ser feito com cuidado o que evitaria desde já desgastes sem necessidade. Mas visto que as lutas ora avançam, ora arrefecem é escusado dizer que necessitamos voltar à teoria e, claro, à história.

            Por mais que existam policiais preocupados com a legalidade (o que evitaria determinados excessos por parte das forças repressivas), o que está em jogo não é necessariamente o ordenamento jurídico burguês. Este pode ser alterado dependendo das necessidades das classes dominantes. E a legalidade por si só representa a mais pura prisão conceitual e historicamente determinada para garantir a dominação de classe. Para compreender esse ponto basta ler, por exemplo, A Formação do Estado Burguês no Brasil (1888-1891) de Décio Saes. A jurisdição é o que garante a atuação da repressão e mesmo à sua revelia o que se tem mostrado claramente é a crescente autonomização das forças armadas, pois em última instância ela detém o monopóio da força podendo ameaçar outras instâncias de poder sempre em nome de um ultra-nacionalismo altamente reacionário. Pensemos a principal reivindicação de Zaccone e de todo o setor autodenominado antifascista: o policial como um trabalhador. Marx define o trabalho da seguinte forma:

“Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve potências nela adormecidas e sujeita o jogo de suas forças ao seu predomínio. (...) Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence exclusivamente ao homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de suas colmeias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador e portanto, idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato isolado. Além do esforço dos órgãos que trabalham, é exigida a vontade orientada a um fim, que se manifesta como atenção durante todo o tempo de trabalho, pelo próprio conteúdo e pela espécie e modo de sua execução, atrai o trabalhador, portanto, quanto menos ele o aproveita, como jogo de suas próprias forças físicas e espirituais.” (Marx, 1988, p.143)

            Seria a repressão um trabalho qualquer (já que também podemos incluir na categoria trabalho determinados serviços)? Que função desempenha este tipo de trabalho na sociedade capitalista? Seria o policial parte de todo o restante da classe trabalhadora? Da classe que produz todas as riquezas que no sistema econômico vigente é apropriado por uma parcela muito reduzida da população? Se fosse a polícia pertencente de fato à classe trabalhadora, o que explicaria tamanha ofensiva, perseguição, encarceramento, criminalização, assassinatos e torturas perpetrados pelas forças repressivas de uma forma geral? Ora, buscar forçar construir uma ideia positiva sobre a polícia e as forças armadas não muda o que ela é na prática. Não altera o seu passado, tampouco acena para uma possibilidade de mudança na sua função social e política. Pelo contrário. Essa argumentação é uma espécie de plano B das próprias classes dominantes e suas classes auxiliares para conseguir continuar legitimando a repressão que serve objetivamente sempre favorável aos mais ricos.

            Esse antifascismo é algo extremamente perigoso. Essas frentes democráticas são compostas obviamente por diversos setores da classe trabalhadora, mas que quase sempre se resume aos mesmos ordenamentos jurídicos, portanto, restrito ao jogo da democracia burguesa.

            Se se tem um setor da polícia indisposta à radicalização e favorável sempre à conciliação de classes é notório o objetivo dessa frente: não só conter o avanço das lutas, mas já de antemão criminalizar no interior das próprias organizações e manifestações populares qualquer aceno para a liberdade e tomada de poder pelos setores subalternizados. A polícia antifascista nesse caso fará exatamente o mesmo papel da polícia, mas de uma forma a reconduzir os processos velando suas intenções contudo com o mesmo discurso e práticas autoritárias e inquestionáveis. A função desse setor é também produzir um revisionismo histórico e teórico readaptando as lutas populares aos anseios da burocracia estatal, parlamentar e partidária. Essa polícia já é íntima dos partidos de esquerda como é o caso do PSOL que não passa de mais um partido neoliberal notadamente orientado à desarticulação das lutas convertendo tudo quanto for possível aos regimentos da democracia burguesa.

Numa dura crítica ao bolchevismo, Otto Ruhle em setembro de 1939 diz o seguinte:

“A ultra-esquerda (termo pejorativo cunhado por Lênin contra orientações que destoavam do bolchevismo) declarava o parlamento historicamente ultrapassado, mesmo como simples tribuna de agitação, e não via nele senão uma perpétua fonte de corrupção tanto para os parlamentares como para os operários. O parlamentarismo adormecia a consciência revolucionária e a determinação das massas, veiculando ilusões de reformas legais. Nos momentos críticos, o parlamento transformava-se numa arma da contra-revolução. Era preciso destruí-lo ou, melhor ou pior, sabota-lo. Nos momentos críticos, o parlamento transformava-se numa arma da contra-revolução. Era preciso combater a tradição parlamentar na medida que ela tinha ainda uma função na tomada de consciência proletária.” (Otto Ruhle, A luta contra o fascismo começa pela luta contra o bolchevismo)

            No entanto, não foi essa a orientação de Lênin e dos bolcheviques o que acabou por não extinguir a burocracia estatal: pelo contrário, fortaleceu essa como elemento sine qua non ao estado soviético. É claro que o reformismo de hoje, ou o que podemos chamar de neoreformismo ou simplesmente progressismo, apesar de beber de algumas fundamentações teóricas do bolchevismo e da extinta social democracia está anos luz de distância de tais orientações históricas. O que se tem hoje de forma muito caquética e mambembe é simplesmente o neoliberalismo em estado puro com algumas doses de reivindicações democráticas o que nem de longe tem a capacidade de mudar o cenário político atual. Tais forças autodenominadas antifascistas, na verdade, são manifestações das alas capitalistas democráticas aguerridas à manutenção das mesmas formas de poder que já estão estabelecidas desde as revoluções burguesas. São forças contra-insurgentes e que se comportam ponderando as contradições inerentes ao estado, ao capital e por conseguinte às forças repressivas que devido ao seu compromisso com toda ordem de crimes precisa dessa ala para demonstrar alguma preocupação com aquilo que chama de excessos.

            Por fim, Zaccone, como todos os defensores da ordem estabelecida, não ousam falar no fim da polícia ou da necessidade desse fim, pois isso acarretaria o fim de suas posições. Se não se debate os pormenores da atuação e situação histórica da repressão policial o que se tem é uma espécie de cortina de fumaça ou areia nos olhos dos trabalhadores que são obrigados a se acostumar permanentemente com a ideia de um policiamento contra as lutas populares. A polícia antifascista nesse sentido é tão somente mais um desserviço e uma ameaça ainda maior contra os trabalhadores.

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