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A tarefa do cinema político


Toda a história do nosso país pode ser contada através do cinema. Certamente algum cineasta pensa em produzir um filme sobre os acontecimentos que estão se dando agora com todos os antagonismos tão evidentes. A política é um prato cheio para o cinema. Este cinema toca em questões cada vez mais profundas, ainda que em alguns casos pelo seu alto comprometimento com o capital deixe de questionar e passe a afirmar o establishment. Mas o que me interessa aqui é introduzir a discussão de questões importantes que venho discutindo com meus companheiros de produção: o que se quer com este cinema que se faz ou que cinema é possível fazer nas condições dadas? Digo, no caso dos produtores. Que tipo de organização é necessário construir para a produção e distribuição desse cinema que se quer fazer ou que se faz? Que tipo de teoria é preciso desenvolver para fomentar a emancipação e a educação do olhar? E o mais importante: como contribuir para a revolução social utilizando o cinema para isso? E por fim, qual é a função do cinema na sociedade? São realmente muitas questões, mas temos que pensá-las.
            É claro que nenhum indivíduo tem as respostas acabadas para todas essas questões. Tampouco essa é uma forma de driblar o debate, que é coletivo e damos aqui apenas uma contribuição pequena. Para construir uma teoria é necessários esmiuçar alguns pontos.
O cinema é uma ferramenta imprescindível na defesa dos grandes interesses de classe. Essa arte está longe de ser um mero divertimento. Obviamente que a utilizamos também para isso. Vamos ao cinema em encontros com amigos e namorados para ter contato com outras sinergias e saímos afetados dependendo daquilo que nos é mostrado. Por isso, é normal fazermos balanços, ainda que breves e de forma mental, após ver um filme. Esse afeto é carregado de valores que por vezes se confrontam com os nossos, causando as reações mais diversas. Às vezes estranhamento ou má compreensão, outras vezes uma profunda identificação com aquilo que vivemos ou pretendemos viver. Como cada frame é pensado, nada ali é mostrado gratuitamente. Desde a elaboração do roteiro, filmagem e montagem, tudo é milimetricamente pensado, até mesmo no cinema mais livre. O exercício da montagem, por exemplo, estabelece o que entra e o que fica de fora definindo o conteúdo e a narrativa do filme. Por isso, explorar e compreender essa arte requer uma boa compreensão dos fatores sociais que determinam aquilo que se produz.
            No entanto, utilizamos o cinema primordialmente para confrontar nossos limites pessoais, mas principalmente aqueles que atravancam o avanço das sociedades denunciando as contradições através dos atrativos do audiovisual. O filme político é, portanto, uma arma eficaz nas disputas hegemônicas. Ainda que as esquerdas de uma maneira geral tenham entendido mal a função do cinema (arriscaria dizer que alguns setores simplesmente recusam essa ferramenta como algo necessário), a sua produção acaba avançando por outros lados, que por uma falta de organização é facilmente cooptado pelo mercado e suas formas de fetiche e espetáculo.
Digo que as esquerdas entendem mal porque em primeiro lugar muito mal produz filmes, muito menos a apoia restringindo-se a algumas exceções de nomes já demasiadamente conhecidos funcionando muitas vezes como um outro mercado. A esquerda não fomenta a produção cinematográfica, e seus produtores por uma parca formação intelectual acabam se formando por outros referenciais e naturalmente servindo a outros interesses. As esquerdas, portanto, não fazem uso dessa ferramenta tão necessária a luta dos trabalhadores que diariamente são bombardeados com mil notícias capciosas da direita e produções com mega investimentos. Os partidos, sindicatos e organizações autônomas muito recentemente tem se preocupado com o audiovisual beneficiando cobertura de manifestação ou análise política, mas nunca a construção lúdica da emancipação humana ou simplesmente uma montagem agressiva que denuncie com eficácia os desmandos do capital e do estado. Eles não têm quadros qualificados para isso. E que diferença faz este apoio? Para quem produz, muita. Para os trabalhadores o ganho é ainda maior.
            O cinema político é aquele que se agrega às lutas desenvolvendo-se no seu interior, independente do seu modo de financiamento. Seja nas culturas de resistência ou nos movimentos sociais este cinema se forja a partir de necessidades reais e concretas. Sua precariedade, no entanto, é o seu principal limite o que muitas vezes reduz a sua vitalidade resultando na sua anulação. O cinema que é possível fazer então na maioria das vezes é tecnicamente limitado, mas nem por isso perde no seu potencial crítico como é o caso de Atrás da Porta filme visceral de Vladmir Seixas ou À Margem da Imagem de Evaldo Mocarzel que aborda os porquês de um importante setor da classe trabalhadora estar alheia às construções narrativas imagéticas e quando aparecem são marcadamente caricaturizados ou utilizados em prol de interesses privados.   
             A distribuição desse cinema também é precária, pois não existem redes horizontais estabelecidas a partir de um objetivo centrado e comum, necessário à construção de alternativas ao mercado que tudo traga. Os produtores, então, são obrigados a adentrar em regras muito pouco conhecidas e que tem seus mecanismos próprios de seleção que estão longe de ser democráticos. O que se quer com este cinema é limitado mais uma vez por estes fatores. Registrar-se na Ancine, ter um Mei, pagar taxas, impostos, enfim, tudo isso não necessariamente precisa fazer parte da construção cinematográfica. Produzir um filme independente com orçamento médio é algo muitíssimo difícil. Os filmes políticos produzidos são neste universo os mais baratos.
            A função do cinema político é certamente contribuir da melhor forma possível às necessidades mais urgentes da classe trabalhadora, contribuindo para a sua organização e emancipação. É função deste cinema denunciar (sem pestanejar) a burguesia como classe dominante e seus aparatos como a polícia, a justiça burguesa e a sua mídia que entorpece os trabalhadores com mentiras e mentiras. Dentro disso, o cinema entra num debate ainda maior que é o campo da comunicação.
            Bom, de uma maneira geral são questões que me vem à cabeça cada vez que produzo um filme e que são questões que vem povoando os debates dos produtores que buscam construir alternativas frente ao impetuoso ritmo do capital. Continuamos o debate em breve...


Comentários

  1. Foi tanto barulho para a série do Padilha mas ao mesmo tempo o que a esquerda produz ?
    Tenho pensado muito sobre o estado letárgico e defensivo da esquerda, que só contra ataca e nunca parte para o ataque. Só reação e não ação. E como o áudiovisual é uma arma poderosa que passa batido nas pautas.

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