Poucos
filmes nos causam tantos efeitos colaterais como Paris, Texas do grande diretor
Win Wenders. É claro que cada filme toca a pessoa de uma forma, dependendo de
uma série de questões como o capital cultural ou simplesmente a sensibilidade
de cada um. Cada um decodifica as imagens e informações de uma forma e a partir
do seu lugar. Por isso os bons filmes precisam ser vistos sempre que possível,
revisitados e reinterpretados. Dependendo da época que se vê há coisas mais
evidentes que outras, coisas que marcam e outras que passam batido. E o que nos
diz Paris, Texas?
A
metáfora do deserto, já explícito no início do filme é um caminho para se
começar a pensar o universo dos personagens que se desvendam ao longo da
narrativa. O deserto simboliza não só essa vastidão onde os pontos cardeais são
invisíveis e qualquer direção é válida. Ele representa o próprio universo de
Travis Clay Henderson. É um universo sem idiomas e sem ruas. Sua memória é um
deserto e precisa ser preenchida ou repreenchida. Travis apenas anda pelo
deserto e no limite da sua sede após frustrar-se com a ausência de água numa
torneira encontrada em alguma propriedade, entra num estabelecimento e abocanha
algumas pedras de gelo e simplesmente desmaia.
O
primeiro encontro com seu irmão, Walt, é marcante. Travis simplesmente passa
sem reconhecê-lo. Está um maltrapilho. Nenhum laço parece ter restado. Walt precisa
lembrar que é seu irmão. Insisti para que entre no carro. Walt é um publicitário
que mora em Los Angeles com sua esposa Anne e o filho, o pequeno Hunter de sete
anos que na verdade é filho biológico de Travis e Jane, que também sumiu
deixando apenas uma pista que será decisiva para um possível reencontro. Eles
não se vêem a quatro anos. Pode parecer pouco, mas não para uma criança. O que
houve afinal? Por que Travis sumiu e caminha indiscriminadamente pelo deserto? Qual
a natureza do seu vazio?
Ao
reencontrar novamente o irmão dessa vez na linha do trem, Walt pergunta:
“importa-se de dizer para onde vai? O que há lá?” Nada se vê além de uma
paisagem infinita. Não há nada
lá, diz Walt. Ao olhar-se no espelho novamente, Travis vê uma nova imagem mais
confortante do que a que viu no chalé. Há uma tristeza profunda e inexplicável em
Travis.
O
silêncio ensurdecedor do irmão deixa Walt inconsolável, até que Travis
pronuncia a primeira palavra aparentemente sem sentido: “Paris”. A relação com
o tempo e espaço, com as coisas e as pessoas e consigo mesmo ganhou outras
proporções em Travis. Tudo parece estranho, desconfigurado, embaralhado. Ele
rejeita sair do chão entrando em pânico numa simples viagem de avião. Quer o
mesmo carro que antes para viajar a LA, mesmo que aparentemente todos sejam
iguais. Na verdade não são iguais. Cada um possui uma história e não importa se
a viagem vai durar muito mais tempo.
A
viagem a Los Angeles também é uma parte muito bonita do filme de Wenders. Walt
é um homem muito sensível e ajuda o irmão a investigar a natureza da sua
ausência, aproveitando-se do reestabelecimento da fala e do diálogo. É como se
Travis aos poucos estivesse retornando ao mundo dos vivos buscando desde as
entranhas a sua origem, sua gênese. Mas ao mesmo tempo em que comemora, Walt
sabe bem da condição do irmão e desconfia quando este pede para dirigir o carro
para que Walt possa descansar. Inevitavelmente o caminho escolhido por Travis
foi qualquer outro menos a rota programada.
Paris,
Texas é um filme sobre perdas, descaminhos, reencontros, tempo e vida. A forma
como Hunter se aproxima novamente de Travis é a partir da memória através das
imagens como um vídeo de Super 8 ou fotografias antigas. As imagens revelam
novos sorrisos, mas também trazem dor. A dor de perder Jane parece ser grande
em Travis. Mas aquilo que Travis viu sendo projetado, como muito bem coloca
Hunter, agora é apenas uma imagem congelada que diz respeito a um tempo
distante. O devir permanente da realidade parece ter modificado muitas coisas,
mesmo que num curto tempo de quatro anos.
Travis
resgata, mesmo que temporariamente (pois não sabemos o desfecho final da sua
vida), a racionalidade e até mesmo a dignidade na busca por não deixar Hunter
cair no mesmo abismo do vazio existencial. A viagem em busca de Jane é outro
ponto alto do filme, pois transforma-se numa verdadeira aventura. E é então que
vem o ápice do filme, uma das cenas mais fortes do cinema, na minha avaliação.
Recontar uma trágica história a partir de um difícil reencontro, num local onde
os dois não se tocam e Travis fala ao telefone virado de costas contando a
história dos dois a partir de um relato entre supostos dois desconhecidos.
Travis amava tanto aquela mulher que não suportava um segundo de ausência. O
fato do trabalho tirar tempo de vida conjunta o perturbava. Os pontos se ligam
para Jane quando o cenário do relato se revela: “o trailer”. É a primeira vez
que a câmera entra no ambiente de Jane, mas ela não vê nada além da sua própria
imagem.
As
coisas não voltam ao que era antes. Mas nem por isso a memória deve ser
apagada. No filme, Wenders resgata a memória como elemento de emancipação,
ainda que em contradições evidentes ou condições precárias para esta
realização. Por isso, não existe lugar para nostalgia. Talvez Travis via algo
além de um horizonte infinito e aparentemente vazio no deserto. Talvez a
ausência dos pontos cardeais fosse o mais irrelevante. A sua busca continua
ainda que com difíceis perdas, não se sabe ao exato para onde, mas os rastros
que deixou foram suficientes para não ampliar o desastre para além de um
momento.
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