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A Prisão da Razão (conto)


            


Romão estava completamente perdido. Nada mais clichê. Quem, neste tempo de loucura e irracionalidade, não está incerto de sua própria existência a ponto de aguardar e desejar a morte? Que relações mais toscas, pensou. Que gente mais mesquinha e repugnante. Desejou matar todos a um só tempo. Uma bomba e bum!! Sabia que a morte era só uma questão de tempo e não parava de pensar e pensar... Avaliava as coisas de forma caótica. O que adiantou fazer direito, virar doutor e tudo mais? Romão era doutor de verdade, com doutorado. Grandes bostas. Tudo isso só serviu para deprimi-lo ainda mais, jogando-o no limbo de um pensamento crítico solitário, estéril. Gritava para si mesmo. O que é capaz de fazer um indivíduo em meio à barbárie? As relações amorosas, as drogas, dívidas e frustrações; os fantasmas do mundo moderno o atormentavam. A prisão da razão. O medo e o pavor de dar um passo adiante simplesmente o neutralizou. O fascismo venceu, concluiu. O que resta então? Matar ou morrer. Lutar, denunciar, impedir que a barbárie se alastre. Na verdade são poucas as saídas. Seu pai, um velho biólogo, morrera em um grave acidente de trânsito. Sua mãe simplesmente sumiu. Romão ia à praça, sentava, tomava um gole. Por acaso ouvia conversas das meninas universitárias de classe média. Aquilo o gerava um mal estar a ponto de querer vomitar em cima delas. Foda-se o seu passeio do fim de semana na trilha do caralho a quatro, o encontro de bambolês, a ciranda e a sua prova de antropologia dos infernos. Aquela vidinha medíocre e inócua lhe causava náuseas. Na verdade Romão já não era bem visto nos lugares por onde passava. Apesar de ser um bom advogado e lutar constantemente contra a miséria e opressão sentia profunda rejeição social. Que se foda, pensava. Mas no fundo aquilo o incomodava. Quem o rejeitava? As menininhas toscas de classe média que fudera tempos atrás e por decepcionar os corações ainda que tenha dado prazer às bucetas, fora punido pelas improdutivas e impotentes bocas falantes. Romão cagava. Nenhuma buceta o satisfazia. Nenhuma droga o contemplava. Nenhuma teoria era novidade. Nenhum pensamento lhe escapava. Sua situação se degradava. A solidão, a escrita constante, a leitura, o crack, o cárcere. Já tinha pensado em suicídio. Leu Marx e Durkheim para entender melhor o assunto. Pensava que seria mais produtivo matar alguém. Pensou em matar Fiuza, mas ela já o matara primeiro. Maldita vadia. Fiuza era atriz, fingida. Atrizes são bichos perigosos, concluiu. Malditas e calculistas. Vingativas e tenebrosas. Elas articulam a sua morte social e ficam impunes. Romão teve um filho com Fiuza, mas nunca ou quase nunca o via. Era proibido. A influencia do pai poderia levar o garoto à morte ou a confusas conclusões sobre a existência. Já esquecera até que tinha filho. Só não esqueceu quem era. Ainda era o velho Romão. Seus amigos estavam caindo um a um. Overdose. Morte súbita. O coração parava. Explodia. Alguns surtavam. Saiam na porrada entre si. Outros eram presos. Se odiavam. Mas Romão sabia que as putinhas brancas não tinham culpa. Os amigos retardados também não. Os professores e burocratas, a militância pós-moderna de esquerda, os perdidos e drogados, as mulheres cheirosas que sentavam ao seu lado, os desgraçados que queriam a sua morte. Tava todo mundo perdido e fudido. Os psiquiatras, psicólogos, músicos e poetas, desempregados e donas de casa. Tava todo mundo na merda. O seu chefe na repartição burocrática, apesar de ser um cretino, também não tinha culpa de porra nenhuma. Era só mais um verme. E de quem era a culpa? Ou melhor, a responsabilidade da miséria humana? Do jornalista que fala merda? Ou daquele que acredita? Do que mente ou do que inventa as mentiras? Do patrão? Do empregado? Da esposa, do filho ou do marido? A culpa, pensou, era da história. Por isso, nada mudaria. Pelo menos tão rapidamente. A história, pensou, não é de ninguém. Não é uma propriedade privada. A miséria do pensamento, dos comportamentos, é parte constitutiva da história. Não adianta fugir para o campo, tomar trocentas doses de heroína, dançar com bambolê ou gritar publicamente, fazer performance ou fingir sofrimento. A história é como um trator. É avassalador e mortal. O ressentimento, pensou Romão, é bobagem. É inútil. Foda-se a punição proto-fascista dos homens pequenos. Estão todos loucos, concluiu.

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