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A morte de Romão (conto)



Romão tinha voltado. Desaparecera após fugir do hospital psiquiátrico junto com alguns comparsas. Perambulava por aí em busca de algum conforto. Seu corpo estava só a caveira. Costumava dormir em qualquer esquina, em qualquer abrigo. Uma coisa era certa, Fiuza não saia de sua cabeça. Mesmo tendo sido ela quem o internou, havia saudades, muita saudade. Estava viciado em crack e bebia todos os dias. Na verdade, Romão desejava a morte, mas era um covarde. Deteriorava-se aos poucos porque não tinha coragem de pular de um edifício. Outro dia tentou se jogar do décimo primeiro andar da UERJ, mas foi impedido por um estudante. Romão não parava de chorar. Perguntou ao estudante por que não o deixou morrer e o rapaz respondeu que o salvou por impulso. Por sorte não houve nenhum tipo de pregação religiosa. Certa vez quando se jogou do ônibus foi acudido por um pastor que piorou sua situação psíquica. Estava um caco, um trapo. Perdera toda a credibilidade, mas o que mais doía era a alma. Parecia que havia um buraco no seu peito, um vazio incurável, incalculável. Não acreditava mais em si próprio nem em suas próprias mentiras. Fiuza armou uma cena contra Romão para interná-lo. Ela passou a achar que ele representava ameaça a sua integridade. A única vez que foi feliz foi com Fiuza. Odiava a sogra. Uma mulher calculista, insípida, mas a tolerava por conta da filha. Por isso a vida pouco importava agora. Longe do seu amor estava entregue à loucura, bebedeira e altas doses de crack. Resolveu procurá-la. Romão não lembrava nem mesmo do seu filho. Tinha dúvidas se era seu. Sabia que Fiuza tinha um filho, mas não ligava se era dele ou não. Andou, andou até ficar extasiado. Sentou-se e pediu dinheiro na rua. Há dois dias seu estômago não via um alimento, só bebia cada vez mais. Enfim, chegou ao bairro que ela morava, bateu a porta de uma casa qualquer e quando alguém atendeu balbuciou grunhidos impossíveis de decifrar. A pessoa o olhou com indiferença e simplesmente bateu a porta. No que insistiu, Romão foi posto para fora do quintal a base de pancadas. Sai, lixo humano! Gritou o rapaz revoltado por ter sua propriedade invadida. Levantou-se com dificuldade e andou mais um pouco, mas nada encontrou além de casas desconhecidas. Numa de suas últimas investidas foi capturado pela polícia que desconfiou do homem que andava sem rumo pelo bairro. Romão foi desovado em outro município, roupas rasgadas, quase despido. Seu nariz escorria catarro e sangue. Mas a dor física não representava mais nada. Aquela carcaça há muito não recebia um toque de carinho. Estava desnorteado. Como foi possível chegar a essa situação? A família de Romão não existia. Sua mãe e seu pai morreram num acidente de trânsito quando ainda tinha dezesseis anos de idade e desde então fora obrigado a sobreviver sozinho. Estudou, formou-se em direito. Fez mestrado e até mesmo doutorado. Um homem tão inteligente, tão bonito, como pôde cair nessa? Diziam. Romão trabalhou durante quinze anos defendendo criminosos, presos políticos e jovens infratores. Conheceu Fiuza numa pequena livraria num de seus dias de folga que usava para ler jornal, revistas e romances. Não dava mais tanta importância a teoria política. Achava que a sociedade já estava em colapso e nada poderia evitar o caos generalizado. Perder a sanidade só fazia parte desse processo de degradação social. Aos poucos começou a se confundir com os personagens e até mesmo autores que lia e quando encontrou Fiuza pela primeira vez a chamou de Jenny. Ela riu, nada entendeu, desconversou e continuou concentrada em sua leitura na pequena livraria que frequentava no bairro. Naquela altura, Romão já estava saindo da casinha, como dizem. Chamou Fiuza de Jenny por achar que era Marx. Por isso havia sido internado. Mas aparentemente estava bem. Desculpa, eu te confundi, disse Romão. Tudo bem, disse Fiuza sem desgrudar os olhos do livro. Lia uma literatura fajuta de auto-ajuda misturada com empreendedorismo de algum guru charlatão que só convencia incautos. Jenny jamais leria uma bosta dessas, pensou. Você já leu isso? Romão se aproximou novamente com um livro de capa dura muito bonito, parecia uma edição de colecionador. Ele sabia que a beleza do livro a atrairia. Era um livro do Zé do Rio, realmente uma edição muito bonita. Você sabe que os andarilhos são os melhores conhecedores do mundo, né? Disse Romão dessa vez atraindo o olhar da moça. O submundo das ruas, dizia o subtítulo. Eu me identifico com as ruas e as pessoas comuns. Depois que li este livro passei a ver fantasmas. Por um momento Fiuza riu, mas Romão falava sério. Sonhava com os tatuadores nas esquinas marcando a pele de marinheiros, putas, pintores e trapaceiros. Não tinha medo de ser um deles, pois no fundo sabia que era um deles. Romão simplesmente se apaixonou pela moça que acreditava em gurus enganadores e a desejou profundamente. Fiuza não sentiu a mínima atração por aquele homem, mas resolveu tomar um café. Romão cheirava bem, dentes limpos, óculos de grau e vestia um terno muito antigo quadriculado que na verdade fora copiado do figurino do irmão de Travis, personagem de Paris, Texas. Travis, o homem sem passado, aquele que andava sem rumo pelos trilhos. Fiuza o achou excêntrico e quis ouvir mais que falar, quando de repente seu telefone tocou. Não, mamãe. Sim, mamãe, estou bem. Ainda não, mamãe. Tchau. Me desculpe. Não, que isso, tudo bem. Que bom que você ainda tem mãe. Desculpe, eu tenho que ir. Mas já? Perguntou Romão decepcionado. A mulher teve pena dele quando o viu desapontado. Eu sempre venho aqui. Gosto de acompanhar os lançamentos do Prem Baba. Romão gargalhava por dentro. Como pode alguém ser tão estúpido? E o que você tem aprendido com ele? Desculpe, tenho que ir, disse novamente a moça. Ela era fria como uma geladeira, mas sua beleza fenomenal enfeitiçou o velho Romão. A moça se foi, deixou o livro do guru na estante vermelha que dizia “auto-ajuda”. Os dois só foram se reencontrar vinte dias depois. Romão sabia que ela estaria lá, pois havia lançamentos de novos títulos inúteis. Aprenda a viver, aprenda a morrer era o título do novo livro do guru. Desculpe, eu estava atrasada aquele dia. Como você está? Romão estava realmente feliz por estar vendo aqueles cabelos vermelhos reluzentes, soltos com fios grossos. Queria sentir o cheiro e tocá-los. A moça começou a falar sobre sucesso, energia positiva, fases da vida e terminou com uma aula de empreendedorismo e signos. Tem tudo a ver, ela disse agora mais animada. Se você pensa positivo, tudo flui. E o que você está pensando agora? Perguntou Romão mexendo o café. Na verdade nada. Só estou conversando com você. Vamos ali fora? Sugeriu ele. Fiuza comprou o novo título. Queria aprender a viver e a morrer em paz. De toda forma o papo agora fluiu para outras direções. Fiuza ficou encantada com as histórias do Rio de Janeiro que Romão contava. Romão era um leitor ávido. Conversou sobre filosofia antiga e moderna, sobre reis e Estados, sobre a vida e o mundo. De forma inesperada os dois se beijaram na rua. Romão com gosto de café na boca e foi Fiuza que o convidou para ir até a sua casa. Sentaram-se, ouviram música e apesar de tudo não transaram. Romão saiu insatisfeito e entristecido por isso. Queria beijá-la de todas as formas em todos os espaços do seu corpo. Demorou mais alguns dias até que se reencontrassem e fizeram amor e a partir daí parece que os afetos começaram a se equalizar. Foi no meio desse processo que as coisas começaram a aparecer estranhas para Fiuza, que notou certos comportamentos de Romão. Ele passou a enterrar livros e a dizer que agora não se chamava mais Romão. Foi inevitável a separação. Fiúza estava grávida e não sabia o que fazer e veio de sua mãe a ideia de interna-lo num sanatório. Você não é homem para a minha filha, seu monstro. Gritou a mãe de Fiuza no dia em que foi sequestrado e internado. Por sorte do destino, Romão conseguiu fugir, e ali estava agora em frente à pequena livraria, encantado e ao mesmo tempo muito confuso com todas as memórias que atravessavam sua cabeça. Nem sinal de Fiuza. Romão entrou na livraria, atordoado, drogado de crack, fedendo e esfarrapado. Pegou um dos títulos da estante vermelha e pensou sentir o cheiro dos dedos de Fiuza que possivelmente passaram por aquelas páginas. Tem o novo do Prem Baba? Perguntou ao atendente. Não, senhor. A conquista da fé e dos negócios só sai no próximo mês e é uma edição especial com DVD, completou o funcionário. Romão, obviamente, não estava interessado em fé, negócios ou Prem Baba. Enquanto o atendente falava, ele cheirava as páginas de “Aprenda a viver, aprenda a morrer”. O senhor deseja mais alguma coisa? Perguntou o atendente observando os gestos de Romão. Aquela mulher com cabelos vermelhos, você a viu por aqui? Desculpa, senhor, eu sou novo aqui e a parte de auto-ajuda quem entende mais é a Mônica, a outra atendente. Romão botou o livro debaixo do braço e saiu naturalmente, mas foi interceptado pelo segurança que obedeceu ao alarme. O segurança da livraria chegou até mesmo a cuspir na cara de Romão, que tinha perdido o senso de propriedade e esqueceu do caráter sagrado da mercadoria. Esqueceu também do quão truculentos são os defensores da ordem. O atendente ficou impressionado com a atitude do segurança, que adorava os pequenos poderes típico dos homens pequenos. Tem gente que se entrega a loucura. Outros entregam-se por completo ao capital. São todos loucos na verdade. Na verdade Romão já estava nas últimas. Seu corpo denunciava sua fragilidade e a não ser que abandonasse completamente aquela vida, o seu destino era algum necrotério ou uma cova como indigente. Aquela livraria e os arredores virou seu território, ainda que sob constante risco dos olhares que o vigiava. Fez amizade com outros moradores de rua e finalmente passou a jantar todas as noites graças aos evangélicos que levavam comida para o lumpem que se amontoavam nas calçadas. Romão perdera a sanidade, mas não por completo. Odiava pastores, evangélicos, cristãos e toda ordem de religiosos. Odiava agradecer a deus e ter que orar numa roda comum com os outros moradores de rua. Não cuspa no prato, disse um homem. Aceite de bom grado. No fundo são homens bons. Na faculdade, Romão aprendeu que os homens bons na verdade eram senhores de escravos. Romão ficava a uma certa distância da livraria de forma a perceber a movimentação da loja quando finalmente viu Fiuza entrar e a observou conversar com o atendente, aquele mesmo que dias antes o atendeu. Imaginou o que possivelmente estavam dialogando. Sabe, agora eu não tenho mais medo da morte. Aprenda a morrer me ensinou a lidar com os meus medos. Você tem o novo do Prem Baba, aquele com DVD? Perguntou Fiuza em frente a estante vermelha recheada de novos títulos e outros já considerados clássicos. O atendente entregou o novo título em suas mãos que acariciou as páginas novas. A ansiedade levou Romão a beber desesperadamente que em pouco tempo ficou desnorteado. Ele sabia que não podia entrar na loja. O cão de guarda que quase o espancou estava lá com as mãos coçando. Sentou-se e pediu um cigarro para o amigo ao lado e levantou-se quando viu Fiuza sair da loja. Começou a segui-la, mas a perdeu de vista quando ela entrou no ônibus. Romão chorou como uma criança e dormiu ali mesmo até o dia seguinte. Quando acordou sentiu vontade de fumar crack. Foi até a boca e sentiu-se feliz, apesar de tudo. Muitas lembranças novamente. Chegou a dormir vários dias em frente à livraria. O segurança já nem se incomodava mais. Fiuza nunca mais apareceu. Romão foi definhando até que morreu numa noite muito fria. Só notaram que o homem morto muitas horas depois, no que levaram rapidamente o corpo para o IML. O médico legista era um dos médicos do sanatório que Romão havia passado alguns anos até sair graças ao levante que organizou entre os internos. O médico contatou a única pessoa que havia em sua ficha de internação, sua ex-mulher. Quando Fiuza chegou e olhou o corpo sentiu pena do homem. As costelas de Romão saltavam ao que parecia os corpos dos judeus em campos nazistas. A moça não chorou, nem sentiu culpa, mas responsabilizou-se pelo corpo e o enterrou num cortejo solitário. Foi um movimento de enterrar o passado e as memórias. De Romão nada sobrou, além de um filho sem pai e sem história. Seu corpo, enterrado numa cova qualquer, a ausência da vida, mas também de sofrimento e da desrazão que outrora o habitava. Enfim, aquela vida nua não faria falta alguma.

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