O que são redes de
apoio mútuo? Qual objetivo em forjar relações de rede entre produtores? Em
primeiro lugar, as redes de apoio fazem parte de um projeto de emancipação
social. De uma forma geral, as redes se formam como única via capaz de
disseminar uma determinada informação ou produção, furando o bloqueio imposto
pelo mercado. Não devemos confundir, por isso, redes de apoio mútuo como algo
que anteceda as relações mercantis, até porque os métodos para se lograr um
lugar no mercado são outros, passando, inclusive, pela negação do produtor e
daquilo que se produz como expressão artística como forma prévia de inclusão.
Nesse sentido, o mercado é aquele que aliena, ou seja, é pautado nessas
relações que a arte e a produção é negada a partir do fetiche da mercadoria e
da alienação do produtor que passa a adequar-se a um determinado conjunto
normativo ao invés de inovar avançando no desenvolvimento da arte, na busca por
outras conexões e formas de fazer independentes da indústria cultural. As
relações mercantis funcionam a partir da lógica da competitividade, portanto,
da exclusão de boa parte dos produtores que não visam ou não conseguiram lograr
um lugar no mercado o que acaba por produzir o seu esquecimento dando lugar e
protagonismo aos que reproduzem em suas relações o espetáculo integrando-se ao
sócio-metabolismo das relações capitalistas.
As redes de apoio mútuo são na verdade a negação e
superação das relações de mercado atestando na prática a possibilidade e
viabilidade em dar vazão de forma proporcional a uma enorme gama de produtores
(artistas, músicos ou profissionais que trabalham em algum campo da arte) sem
que haja competitividade ou anulação de um em detrimento de outro ao mesmo
tempo em que qualifica a rede de forma prática, teórica e material ou
simplesmente financeira. A questão financeira, no entanto, tem um papel
absolutamente distinto das relações mercantis. Enquanto esta visa em última
instância a obtenção do lucro por meio não outro que a exploração direta sobre
o trabalho alheio como condição sine qua non à sua existência (o que acaba por
viciar os produtores a obedecer às regras do capital e seus valores), àquele
cabe utilizar dos meios materiais para cada vez mais ampliar e dar acesso a
produtores que para o mercado não possuem qualquer valor. Ademais, os recursos
materiais garantem a expansão e sobrevivência dos produtores não mais como
indivíduos isolados, mas como um corpo coletivo de livres-produtores, que têm
outras necessidades e parâmetros para a sua arte. O objetivo das redes de
apoio, portanto, é antagônico ao mercado. Vejamos isso explicitado num simples
esquema:
REDES DE APOIO MÚTUO MERCADO
·
- Horizontalidade *
Competição/verticalidade/corporativismo
· - Coletividade *
Individualismo
· - Emancipação/conscientização * Alienação
· - Acesso *
Exclusão
· - Inovação * Clichê
· - Renda/expansão * Lucro
As
redes de apoio, como podemos perceber, parte da compreensão de que de uma forma
geral as relações sociais estão historicamente estabelecidas na defesa e
garantia de interesses privados, o que faz com que passemos a ter uma relação
de sacralizar os poucos produtores ou artistas que se solidificaram como ícones
transformando-os praticamente em semi-deuses excluindo qualquer possibilidade
de crítica radical, pois a crítica passa a ser mal vista ou vista simplesmente
como um desejo oculto daquele que critica em querer ocupar também o lugar de
destaque imortalizando-se no Olimpo dos grandes astros ou das sub-celebridades.
Em outras palavras, para o mercado e para os produtores e artistas
competitivos, a crítica não passa de mero recalque. Na verdade, este é um
mecanismo básico de anular qualquer reflexão contra o mercado, onde a prática
mais reiterada é a da compra e da venda.
Por
isso, o que se observa é que os artistas independentes por não terem construído
um modelo de produção e distribuição antagônico ao mercado, construíram pouco a
pouco os seus corporativismos reproduzindo velhas práticas, ainda que com um
aparente discurso crítico, enquanto outros nem se esforçam mais em professar
qualquer criticidade limitando-se apenas na defesa intransigente da sua
conquista e lugar de sucesso ao passo que estimula os outros a seguir pelo
mesmo caminho, que parece o único frente às adversidades. A crítica então passa
a ser mera formalidade ou tão-somente uma farsa. A condição sine qua non,
portanto, para a construção de redes de apoio é a consciência crítica e o
entendimento do que vem a ser na prática histórica o mercado e a natureza da
mercadoria.
E
como crescer e dar corpo às redes de apoio mútuo? Ora, se num primeiro momento
parece haver a completa hegemonia da lógica obtusa e competitiva de mercado é
no corpo de produtores excluídos que o mercado cria que se deve buscar reverter
este estado de coisas antes mesmo da desaparição dos mesmos produtores que
ainda sobrevivem e construíram algo, ainda que pequeno, para além das relações
mercantis. Esse banco de excluídos pode ser o lugar onde o mercado vai buscar
oxigenar suas relações promovendo um ou outro a uma ascensão social como forma
de justificar sua lógica excludente a partir do mérito individual ou pode ser
também onde se fundará com propriedade novas relações de produção onde os
produtores sejam donos dos seus próprios meios. Os rejeitados foram rejeitados
não só pelo mercado, mas pelo conjunto de produtores independentes ainda
ligados ao corporativismo mercantil como forma de associação. Isso acontece em
qualquer âmbito da produção artística.
Há
corporativismo, por exemplo, no teatro, na produção literária, na música ou no
cinema. Podemos perceber isso quando antes de “estourar”, um determinado
artista já é uma espécie de “promessa” da nova leva que vem aí, quando na
verdade este artista está na esteira esterelizando-se para o mercado buscando
formas de ser aceito desejando cegamente ser incorporado. O que se percebe
comumente é que boa parte desses artistas por mais que disponham de enorme
talento, são inversamente capazes de pensar longe do limitado léxico das
relações de mercado. Em outras palavras, são limitados em suas exposições e assertivas
públicas restringindo-se apenas em ocupar o lugar de artista (fetichizado pelo
público), não de crítico ou daquele que pensa sua própria condição ou processos
de ruptura e emancipação do gênero humano. Isso, obviamente, não é de inteira
responsabilidade do artista talentoso alienado. Ora, se o seu meio nada oferece
além da virtuose técnica ou da sua aparência ou estética transgressora e
seduzente, onde ele encontrará o arsenal necessário a se alcançar o verdadeiro
sentido da arte como ferramenta de transformação social?! Pois bem, a
consciência crítica não nasce do nada ou da curvatura do vento. A consciência é
parte de todo um processo histórico, portanto, teórico precisando ser estudado
e decodificado. A consciência crítica é a base que dará perenidade e suporte às
relações antagônicas à de mercado na busca pela sua superação.
Vencer
este corporativismo entre os próprios produtores é, claro, muito mais viável
que buscar algum tipo de transformação das relações mercantis. Estas jamais
negarão a si própria por óbvios motivos. Já os produtores por estar numa eterna
busca de superar as miseráveis condições materiais em que se encontram, estão suscetíveis
a experienciar e estabelecer relações mais próximas e quem sabe horizontal.
Como não há vácuo nas relações de poder, o convencimento deve ser feito de não
outra forma além da prática coletiva de apoio entre as partes envolvidas. Os
artistas independentes geralmente se apoiam, do contrário dificilmente
concretizariam algum projeto pretendido. Essas relações são o que conhecemos
por “parcerias”, que pode envolver remuneração ou não, mas sempre envolve
recursos materiais, imateriais e trabalho.
As parcerias são formas de
estabelecer relações temporárias e que quase sempre acaba por beneficiar mais
uma parte do que outra, o que passa a dissimular a exploração envolto num
discurso de horizontalidade. Isso
ocorre ou por um aproveitamento da condição de fragilidade de uma das partes
que passa a servir o outro ao invés de ligar-se a ele como igual ou
simplesmente pela própria condição de precariedade dos produtores que não têm
outra alternativa a não ser desdobrar-se para viabilizar determinada produção o
que acaba certamente resultando em sobretrabalho. As redes de apoio mutuo não
são, portanto, parcerias, mas sim parte de um projeto social que engloba a arte
como importante ferramenta de interação entre os sujeitos sociais conscientes
de uma transformação dialética entre o meio social e livres-produtores também
na construção de uma nova sociedade, ou se quiser, de uma sociedade sem classes
sociais.
As
redes de apoio são relações sociais e não dutos que escoam determinada
mercadoria. Neste caso, a internet limita-se a ser uma importante ferramenta de
difusão de produções ou financiamentos colaborativos, agenciamentos ou
comunicação, mas cabe à organização concreta dos sujeitos sociais envolvidos em
sua materialidade coletiva estabelecer os objetivos centrais de tal organização
o que só é possível se feito de forma presencial. Esse contato ao passo que
desmistifica certos pressupostos anteriormente estabelecidos, coloca aos
produtores o instigante desafio de superar todo o conjunto de contradições e
limites já mencionados.
Pensemos o quanto pode ser estimulante estar numa roda
de conversa com algum artista ou referencia que antes compunha apenas o campo
do imaginário onde este agora passa a ser também peça importante para a
emancipação coletiva não mais sendo o velho ídolo intocável ou a pretensa
sub-celebridade transgressora seletiva em suas parcerias e relações. O sucesso,
portanto, só é possível ou só é uma realidade se compartilhado coletivamente
sem corporativismo entre os produtores. Os ganhos não são acumulados para a
glória de um único beneficiado que deixará de cristalizar-se em seus
privilégios caindo por terra a lógica competitiva neoliberal.
Em
linhas gerais, o que podemos afirmar sobre a necessidade de criação e a
natureza das redes de apoio diz respeito às necessidades vitais da própria arte
e do artista que a produz. Pois se o artista não quer ser apenas um aventureiro
(e tudo bem também se assim o desejar ser), este deve inteirar-se completamente
não só do conjunto das adversidades sociais a que está submetido, mas em como
pode superar tal condição sem que ou morra no esquecimento ou caia na esteira
das limitantes relações de mercado que tudo degenera e esvazia de sentido.
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