“Para entender o que está acontecendo no mundo agora,
precisamos refletir sobre duas coisas. Uma é que estamos em uma fase de
testes. A outra é que o que está sendo testado é o fascismo - uma palavra
que deve ser usada com cuidado, mas não evitada quando está tão claramente no
horizonte. Esqueça o “pós-fascista” - o que estamos vivendo é o
pré-fascismo.” Fintan O'Toole
O homem moderno tem enorme apreço pelas conquistas
empreendidas em seu tempo. Devemos ressaltar que se trata de um tempo de lutas,
rupturas, acirramentos e revoluções. A busca por romper com a velha ordem
medieval com monarquias parasitas foi paulatinamente e depois radicalmente
posto em prática pela nascente burguesia europeia do início da formação daquilo
que passamos a conhecer por modernidade. A modernidade é marcada pelo seu
humanismo. Essa luta nasceu por necessidades políticas e econômicas acompanhada
por avanços do ponto de vista das relações sociais, da filosofia e das ciências.
É um tempo de nascimento do capitalismo. As revoluções burguesas, no entanto,
não eliminaram a dominação do homem pelo homem. O que se verifica tempos depois
é o aprimoramento das relações de dominação. Sendo vitoriosa, a burguesia
empreendeu e consolidou sua visão de mundo dando a esta um caráter universal.
No entanto, o caráter universal do seu humanismo limita-se a dissuadir boa
parte da população em continuar as lutas violentas na busca por ampliar as
conquistas conseguidas quando o regime monárquico absolutista fora esmagado por
forças revolucionárias. A revolução tornou-se tão perigosa para a burguesia que
o seu medo se assemelha ao medo dos velhos reis e rainhas que se diziam
enviados por deus, mas que tiveram suas cabeças cortadas.
Tendo total clareza de seu lugar de comando na
sociedade capitalista, a burguesia agora clama por um entendimento que ela
mesma sabe ser impossível de ser alcançada quando os interesses são
absolutamente antagônicos. Não há como conciliar interesses entre dominantes e
dominados a não ser por via de concessões que visam dar suporte a uma suposta
harmonia social. O discurso de que a democracia está fragilizada ou
comprometida reproduzida em filmes como intelectuais progressistas muitas vezes
universitários ou quadros políticos, é professada por setores que buscam
equalizar essas diferenças sem evidenciar contradições históricas e estruturais
sem ir a fundo no problema. Não há democracia comprometida, tampouco fragilizada.
Há, como sempre houve em sociedades capitalistas, luta entre classes que se
antagonizam no processo de divisão social do trabalho. Uma classe detém os
monopólios dos meios de produção. A outra vende sua força de trabalho como
única forma de sobreviver no capitalismo.
A
gravidade da crise de 2008 gerou necessariamente uma força social capaz de
suportar a crise para salvaguardar o capital mistificando a natureza do
problema inventando inimigos imaginários que do ponto de vista intelectualmente
comprometido com a crítica são risíveis, mas do ponto de vista social muito
perigosos, pois atraem pela facilidade de convencer geralmente utilizando algum
ressentimento ignorando as contradições sociais mais evidentes para garantir os
interesses da classe dominante e suas classes auxiliares. O governo Bolsonaro
tem uma função específica na conjuntura atual que vem alterando de forma
significativa as relações sociais acirrando as contradições de classe. O seu
caráter transgressivo ao mesmo tempo em que satisfaz seu público gera um
desgaste comprometendo sua permanência o que não quer dizer que seu sucessor
seja menos reacionário. Outros fatores também contribuem para fragilizar seu
governo como os diversos escândalos quase semanal e sua capacidade ou não de
implementar políticas de austeridade. O vice Mourão, por exemplo, é apenas um
déspota mais esclarecido, o que pode acentuar ainda mais a gravidade do
problema. A função deste governo de uma forma geral é:
·
Aprovar a reforma da previdência com
agilidade
·
Estreitar os laços com o imperialismo e
governos ultra-liberais de forma subserviente
·
Criminalizar os movimentos sociais e
completar a limpeza social (já iniciada em outros governos)
·
Privatizar recursos públicos de forma a
otimizar o controle do capital
·
Resgatar valores fascistas para uma
possível mudança radical de regime
A
forma radical que o capital tem para garantir os seus interesses é o fascismo.
O fascismo é uma doutrina que abarca não só valores morais, mas um projeto
político e econômico com forte viés eliminacionista. O fascismo hodierno
continua tendo basicamente as mesmas características do fascismo do século
passado, como o ufanismo, o irracionalismo, eliminação das esquerdas e setores
progressistas, xenofobia, militarismo, um forte sentimento religioso, tendo
seus interesses voltados ao aumento das relações de dominação e a manutenção da
ordem mercantil burguesa. O fascismo manifesta-se sempre de forma autoritária e
inflexível a qualquer embate. Ele auto-institui-se como a salvaguarda da
sociedade de bem que deve proteger-se contra as ameaças que querem sua
destruição. A racionalidade é abandonada em detrimento de um líder populista
que traduz um determinado conjunto de insatisfações com toda fúria capaz de
aflorar os sentimentos de revolta da população instrumentalizando-a para um fim
econômico capitalista. O líder é uma espécie de messias, um enviado de deus.
O
debate sobre o fascismo parece ter se perdido o que gera incompreensão
impossibilitando alterar a realidade. É claro que governos autoritários nem
sempre são fascistas. Se assim fosse a vida seria insuportável. A vida burguesa
democrática alivia a tensão gerada pelo fascismo promovendo o funcionamento de
relações sociais baseadas no mercado normatizado pela jurisdição criando um
estado democrático de direitos onde se deve haver o respeito às leis que servem
a todos, mas que numa sociedade de classes a legalidade serve basicamente para
manter o status quo da burguesia. Quando este estado democrático é comprometido
há estado de exceção permanente onde a lei está suspensa ainda que exista
formalmente. No entanto há um momento de alteração das próprias relações
burocráticas de poder da burguesia denunciando também cisões no seu interior. A
moral fascista não só estimula, mas legitima essa alteração da ordem social
vigente sempre por via violenta militar que intenta por uma reordenação das
relações sociais assentado em valores morais atravessado por interesses
econômicos. Essa moral é ufanista e tem como inimigo histórico o marxismo e
qualquer movimento que se oriente por alguma vertente do marxismo. Segundo José
Paulo Neto, o marxismo é a teoria revolucionária do proletariado. De uma forma
geral o fascismo age contra os trabalhadores organizados ou não. O desmonte de
algumas importantes estruturas de garantia aos trabalhadores atende aos
interesses de setores específicos, pois é notória a diferença dada aos
militares ou judiciário e outros setores privilegiados da burocracia estatal. Isso
por si só deveria gerar a completa descrença nas forças militares e demais
forças repressivas do Estado e, obviamente, na justiça burguesa.
O
autoritarismo fascista incide contra segmentos sociais específicos que façam
frente a valores históricos de subserviência às formas autoritárias de poder.
Pensemos, por exemplo, o posicionamento de Olavo de Carvalho, que ganhou enorme
prestígio como principal intelectual do ultra-conservadorismo brasileiro, em
declaração recente sobre o caso do Ministro Moro.
“Eu estou
fazendo este vídeo especialmente para o Ministro Sérgio Moro. Ministro, o
senhor não tem nada que ficar dando satisfações a bandidos que já estão todos
sob investigação e deveriam eles estar respondendo perguntas pelos crimes que
cometeram invés de ficar acossando o senhor com perguntas sem sentido. Eu vou
lhe dar duas sugestões de coisas que o senhor pode fazer para se livrar dessa gente
de uma vez por todas. Primeiro lugar, os que pertencem a partidos que são
membros do Foro de São Paulo não tem nenhum direito de estar no parlamento.
Esses partidos legalmente não existem porque ferem o preceito da nossa lei
eleitoral segundo a qual partidos brasileiros não podem estar filiados a
organizações estrangeiras. Se alegarem, como certamente vão alegar que é apenas
um órgão consultivo ou um centro de debates e que não tem poder decisório,
estão mentindo. Eu já tive uma discussão sobre isso com o diretor de relações
públicas do próprio Foro de São Paulo mais de dez anos; ele alegou isso e eu
mostrei pra ele “olha o senhor está mentindo porque eis aqui as atas do Foro de
São Paulo que termina emitindo resoluções.” Você já viu um mero centro de debates
emitir resoluções? Então, resoluções certamente são poder decisório. Então
esses partidos têm que ser fechados e os seus membros e diretores tem que ter
os seus direitos políticos cassados. Segunda sugestão, o Foro de São Paulo já
existe há trinta anos e até hoje ninguém perguntou de onde veio o dinheiro para
sustentá-lo. Como é possível uma coisa dessa? O Foro de São reúne duzentos
partidos políticos e organizações criminosas como as Farc, o MIR chileno, etc,
etc. As Farc tem praticamente o monopólio da distribuição de drogas no Brasil e
são um membro regular dessa organização. Então, a organização do Foro de São
Paulo ele em si mesmo é uma organização criminosa.” Olavo de Carvalho (Mensagem urgente ao ministro Moro 3
jul 19 – youtube)
Olavo
está sugerindo o rompimento com a própria ordem democrática burguesa, que
comporta no seu interior setores reconhecidos como esquerda, o que legitima o
funcionamento do parlamento. Mas isso não seria inédito, pois Bolsonaro chegou
ao poder por meio de golpe de Estado. Por mais que se tente construir uma ideia
de combate a supostos criminosos, extinguir organizações rivais na prática trás
muitos benefícios políticos, pois o que menos se quer são interferências
negativas contra o governo. Além do mais sabemos que as ideias de Olavo de
Carvalho são radicalmente contra qualquer segmento da esquerda. O que Olavo diz
é que se abram os portões do inferno para toda esquerda que ousar estar no
caminho deles. E se quer punir como demonstração de poder e eficiência já que o
projeto político trás muito mais malefícios aos trabalhadores que privilégios.
A propaganda otimista dos políticos e intelectuais é a blindagem promovida por
uma polícia política que tem interesses claros no jogo político. As sinistras afirmações
dos membros do governo causam para alguns um conforto por acompanhar por meio
do espetáculo midiático e internet as posições aparentemente radicais do atual
presidente o que cria um ar de eficiência principalmente contra a corrupção.
Sabemos, no entanto, que este combate é absolutamente falso não ultrapassando
os limites do simples discurso. Bolsonaro e seus asseclas estão completamente
mergulhados em relações sombrias e nada disso é escondido. Pelo contrário. O
que se criou foi o orgulho à ditaduras militares e a banalização do ódio contra
um inimigo que na verdade é o diferente mas que serve só para acobertar seu
projeto mais amplo.
Principalmente
agora com os vazamentos das conversas entre Moro e Dallagnol o que se busca
construir é que houve uma reação desenfreada da esquerda ressentida com sua
perda de poder apelando para denúncias incabidas contra o governo e não
denúncias graves que comprovam a falácia da “justiça imparcial” o que é
impossível numa sociedade de classes. Os políticos que formam o corpo desse
governo são eficientes em suas funções qual seja alimentar o espetáculo
imprimindo sempre uma visão otimista do governo e das reformas atuais ao passo
que avançam em abrir as relações abertamente simpatizantes com setores
igualmente reacionários como os Estados Unidos ou Israel. O fato da esquerda
parlamentar estar aparentemente combatendo esse avanço conservador chamando o
Moro de ladrão e promovendo sátiras contra o governo por meio da denúncia
contra o fascismo, isso na verdade é parte necessária desse palco onde quem
manda é o capital. Nessa dinâmica a esquerda parlamentar se conforma aos
limites de suas atuações sem comprometer o avanço do fascismo, por entender que
na verdade não há fascismo e que Bolsonaro não passa de um autoritário sem
grandes pretensões e se preciso for negociarão com o governo. Essa esquerda,
por mais que sofra as consequências do ultra-conservadorismo, não oferece
qualquer perigo ao estado de coisas atual e também não está preocupada em
romper com a legalidade, pois assim perderia seu propósito central que é
usufruir da máquina estatal burguesa.
As
contradições de anos atrás não foram superadas. A perspectiva é de piora. Ainda
assim a mentira parece convencer e a estupidez transformou-se em virtude.
Muitos fingem acreditar, alguns de fato acreditam, outros gostam de mentir.
Mentem para si próprios também. A internet, a televisão e o rádio estão tomados
por analistas e formadores de opinião de todas as ordens com o objetivo central
de estimular e legitimar políticas de austeridade normalizando a barbárie num
movimento cotidiano das mais variadas crueldades principalmente contra os mais
fragilizados socialmente. O que está rolando é o assassinato direto da
população pobre. E a polícia está fazendo o trabalho sujo. E o pior: nada está
acontecendo contra os assassinos que servem ao Estado. Eles estão passando
imunes e impunes, privilegiados pela justiça burguesa e pela lógica militar que
lida com seus excessos de forma a não se responsabilizar por aquilo que faz
diariamente em territórios pobres. A violência policial serve para conter as
revoltas populares. É uma polícia política.
O
grotesco e sórdido discurso fascista como nunca foi superado voltou e acumula
forças para concretizar de fato seus objetivos. A virtude dos fracos; dos
teleguiados por uma orientação desumana. Ao mesmo tempo percebemos a enorme
aceitação de fake news por grande parte da população. Este processo é feito aos
poucos, paulatinamente, desgastando as bases de uma visão de mundo progressista
dando um ar de radicalidade em suas assertivas o que acaba por cativar um
público indignado, mas sem uma orientação crítica. O fascismo instrumentaliza o
senso comum para seus objetivos políticos e econômicos interferindo também na
vida cotidiana e cultural das sociedades.
Perceber
a crise generalizada não é o suficiente. Toda geração que um dia pisou na terra
sentiu em algum momento essa força desestabilizadora. A crise, na verdade, é a
própria essência do capital. O capitalismo é a crise. Ele gera a crise e
precisa dela para sua própria sobrevivência. Para compreender isso em
profundidade precisamos estudar autores que se debruçaram sobre isso com
seriedade como Meszáros ou o próprio Marx. É um estudo difícil, porém nos traz
respostas concretas. Qualquer um que desviar o olhar para o lado notará tal
crise, até aquele que julgamos ser o maior dos alienados. Cada um, no entanto,
produzirá uma leitura particular sobre a natureza de tal crise. Na maioria das
mentes a explicação (simplista e rasa) é a famigerada corrupção que fragiliza
as instituições e serve como alimento político para ambos os lados, esquerda e
direita, reivindicar suas pautas. Até mesmo a burguesia, ou principalmente ela,
é capaz de perceber tal crise e ao seu modo denunciar e lutar contra essa
contradição. Neste caso, a burguesia deposita a responsabilidade da crise nos
ombros dos trabalhadores ausentando-se de participação efetiva na manutenção
das diferenças sociais. A máxima de que são os empresários e patrões que
trabalham, geram riqueza e dão emprego a população é tão tacanha e mal
intencionada mas ainda assim convence. O patrão não produz absolutamente nada a
não ser a dominação e a corrupção é apenas um engodo para enganar as pessoas
sobre os reais problemas e contradições da sociedade contemporânea. Sem
corrupção não existe Estado, não existe polícia ou exércitos. Não existe
bancos. A corrupção é a engrenagem dessas forças.
Nunca
houve igualdade social em sociedades capitalistas. É impossível haver igualdade
social onde haja capitalismo pelo fato deste sistema funcionar a partir de
relações de exploração direta de uns sobre outros apenas amenizando aqui ou ali
as consequências mais nefastas de sua forma de organizar as sociedades. O
desespero então pode ser o último gatilho da barbárie. O desespero denuncia a
ausência de consciência histórica. Com o desespero, entrega-se o comando a
qualquer lunático desenfreado em sua perspectiva salvacionista que geralmente
apela ao populismo mais vil, ao patriotismo mais tosco, mas que pela fúria
consegue tocar corações vazios, mentes desesperadas e corpos sem rumos.
O
momento no Brasil não é menos grave que em qualquer outro lugar do mundo,
principalmente em países de capitalismo dependente, como bem argumentou Marini
em suas investigações. Confiar no projeto social, econômico e político da
direita é simplesmente um suicídio. É a opção mais burra de todas as opções. É
uma espécie de punição contra a população. A direita, em última instância, é
força a ser eliminada do mapa com uso da implacável violência popular. Não há
como negociar com quem quer te dominar e neutralizar. Alguns automaticamente ou
inocentemente pensarão: “ah, mas e a democracia, onde fica?” Se a existência da
direita fosse parâmetro para a manutenção da democracia já não seria tempo de
uma igualdade social minimamente palpável? A democracia burguesa não comporta
as diferenças, como alguns ingenuamente ainda creem. A burguesia não admite a
autonomia operária. Ela mata os dirigentes, tortura e sai como inocente na
história. A direita é uma força que não tem outra função na sociedade além de
garantir as relações sociais tal como aí estão e para isso usam de todo e
qualquer artifício inclusive assassinatos, prisões e torturas, mentiras e
calúnias, alarmismos e toda ordem de desonestidade intelectual promovendo todo
tipo de retrocesso social.
O
quadro que se vive hoje é uma sociedade nitidamente perversa, mas que
naturalizou tal perversidade desejando essa perversão em suas assertivas
lunáticas, pobres em argumentos, absolutamente anti-ética onde o que se busca é
a livre-circulação das mercadorias, do lucro patronal, da exploração da força
de trabalho e das relações subalternizantes. O trabalhador que deposita
esperança em políticos de direita o faz por não outro motivo se não para
atestar sua própria incapacidade de romper e reverter com a dominação. O pouco
que ganha em troca dessa relação de pura subserviência são migalhas que a
classe dominante joga enquanto ri da impotência daquele que cata as sobras e
ainda agradece servilmente. O capitalismo, no entanto, busca driblar essa
perversidade dando lugar a alguns subalternos, para que possam gritar e ocupar
um certo lugar de fala que em nada alterará as históricas relações de
exploração. Pelo contrário, complexifica tais relações de exploração
historicamente perpetradas pela classe dominante. Uma mulher presidente, um
negro presidente, mas a miséria continua aí. Milhares na pobreza sem qualquer
chance de ascender socialmente ou de gozar de algum lugar de fala. Morrerão na
miséria. A meritocracia neste caso é cinicamente confirmada pela breve ascensão
de algumas exceções que serve como justificativa ao status quo.
Mas
e quanto à esquerda? Ela goza de credibilidade? A esquerda é uma força difusa,
confusa, convenhamos. Ela é apenas uma espécie de direita mais moderada ou
envergonhada. O que conhecemos por “esquerda” são nada mais que forças
políticas institucionais notoriamente favoráveis às mesmas relações de
exploração que a direita, só que buscando humanizar tais relações. Eles nos
fazem crer que a justiça um dia pode ser neutra, que a democracia foi perdida
(discurso presente em filmes como os de Petra Costa, um verdadeiro desserviço à
consciência dos trabalhadores) ou que policiais podem ser anti-fascistas
despolitizando todo e qualquer argumento a favor da superação da ordem
burguesa. Policiais nunca serão anti-fascistas pelo simples motivo de não
poderem negar o autoritarismo endógeno em que foram gerados. A polícia nunca
lutará contra ela mesma. A justiça nunca agirá em favor de negar a sua própria
função social que é garantir a ordem democrático institucional pautado na
representatividade e na exploração do homem pelo homem. E por fim, não há
democracia perdida. Democracia é um termo genérico que nada quer dizer além de
uma suposta horizontalidade a ser alcançada, mas sabemos que em sociedades
cindidas entre classes antagônicas a democracia exerce função cabal de manter o
poder nas mãos dos dominadores.
A
esquerda neste caso não salvará ninguém do barco furado em que estamos. Ela
obedece a uma espécie de “redução de danos”, mas não soluciona problema algum.
A morte é certa, ainda que a conta-gotas. Uma esquerda que sequer cita a
divisão social entre classes ou sequer toca na necessidade de superação do
capitalismo como condição sine qua non à emancipação humana serve para pouco.
Ou para nada concretamente. Serve como sempre para poucos. A esquerda que se
infurna em parlamentos serve tão-somente como elemento dinamizador das relações
de exploração ou como força necessária a ocultar a essência da exploração de
classe. É uma espécie de amortecedor. Não há qualquer exagero em afirmar que
parlamentares de esquerda são tão nocivos aos trabalhadores quanto o patronato,
grandes empresários ou políticos de direita. Pode parecer paradoxal tal
afirmação, mas dentro de uma perspectiva total, mais abrangente historicamente,
são estes que impediram importantes avanços em lutas populares limitando
trabalhadores a garantir direitos dentro de um estado democrático fictício. Os
corações e mentes foram esvaziados pela política institucional burguesa,
autoritária, representativa. Essa política negou a função dos trabalhadores que
é lutar pela sua própria emancipação.
Os
intelectuais e movimentos sociais de uma forma geral vêm buscando confrontar
(uns de forma frontal outros um pouco mais recuados, mas ainda assim esforçados)
as barbaridades escancaradas por conservadores que por mais absurdo que pareça passou
a fazer parte do hall das questões, pautas, necessidades e explicações sobre os
problemas e contradições sociais assim como posições mais estapafúrdias da
ultra-direita que choca diante da sua coragem em não mais esconder-se
demonstrando claramente sua posição fascistóide letal contra os diferentes
esvaziando qualquer sentido de alteridade. Por mais que se debata, refute, exponha
e explique tais comportamentos e práticas sociais, nada parece mudar
concretamente, pois afinal de contas o que se percebe é a constante derrota dos
trabalhadores em prol das necessidades vitais destes mesmos setores
conservadores que buscam impiedosamente levar adiante aquilo que se pensou um
dia se ter superado como diversas formas de preconceito, violência e outras
formas de dominação e poder. No entanto, enquanto a sociedade capitalista
existe também continua existindo velhas práticas de poder e dominação. As
formas de luta vêm sendo travadas pelas chamadas “greves”, que na verdade são
paralisações pontuais capazes de obrigar o governo a algum tipo de negociação.
Nenhum movimento de ocupação permanente vem sido detectado. Também não são atos
com propósitos mais radicais. A violência tem sido promovida pelo Estado, como
sempre.
A bem da verdade devemos colocar claramente que no que diz
respeito a setores progressistas não haverá qualquer aceno de organização ou
movimentação que exceda os limites da legalidade. A esquerda parlamentar em
nenhum momento deixou de cumprir sua função burocrática evitando ao máximo
exceder os limites do parlamento burguês e de suas burocracias. Sua função vem
sendo, como foi historicamente, arrefecer as lutas de classes desestimulando
trabalhadores, estudantes e proletários a lutar de forma convicta contra um
inimigo mortal: o capitalismo, a burocracia e demais formas de dominação. Não
podemos esquecer que antes do golpe com o governo PT os DCE´s e correntes
políticas partidárias, sindicatos pelegos e a quase totalidade do professorado
universitário ficou chocada com a possibilidade de promover ocupações nos
campus universitários. Pelego é aquele que amortece
um certo impacto causado pelo enfrentamento político. É aquele que por se
acovardar, por não dispor de coragem e disposição política opta por manter-se
firme numa relação de submissão àquele que define as diretrizes políticas. O
pelego é necessário para manter o estado de coisas. A sua relação política
funciona como uma mercadoria, onde se acumula uma parcela ínfima de poder,
garantindo o lucro daquele que se obedece. Por isso, negociar com o pelego é
uma tarefa da ordem do impossível, pois além de tudo o pelego sempre dispõe do
mecanismo da manobra.
Em 2012 os professores da UFF com grande prestígio em suas
áreas foram para as vias de fato com a intenção de derrubar os piquetes que os
estudantes armaram depois de uma assembleia geral. Eles diziam que aquela era a
sua universidade. Não fosse a força dos estudantes os mestres nunca poderiam
ter sido confrontados publicamente. A maioria sequer tinha noção de que havia
tido alguma assembleia que deliberou greve. Um renomado professor do
departamento de História berrava “vocês não sabem nada!”. Eles queriam sempre
levar a luta para os seus gabinetes ou Conselhos Universitários, que serve para
burlar todo tipo de acordo e limitar a participação estudantil. A prática
demonstrou que professores e estudantes não têm os mesmos interesses. Uma
professora também de grande prestígio chamou os estudantes de fascistas dizendo
que piquetes era prática da SS nazista. São afirmações descabidas de gente que
só quer se manter no poder sem de fato se comprometer com a emancipação humana.
A universidade é um espaço de poder e serve aos interesses das classes
dominantes e a chamada esquerda progressista está comprometida com estes
interesses. A universidade é pública, mas serve a fins privados. O processo de
agora somente vai acentuar essa disposição das universidades federais que já
vem se degradando a muito tempo.
O
poder age como uma contaminação. Ele incide sobre o caráter do sujeito de tal
forma a adaptar tanto quanto for possível sua força em disposição de um
interesse que satisfaz certos desejos particulares, mas que geralmente serve a
um propósito muito maior na manutenção de um certo estado de coisas. Esse poder
maior de certa forma cega os seus reprodutores a ponto de degenerar
completamente o caráter de alguém. O poder obviamente exige obediência cega,
negando qualquer tipo de questionamento ou debate, infantilizando, portanto, os
dominados. O poder é uma representação ou certa função social fetichizada
concentrada como poder de mando e dominação direta de uns sobre outros. O poder
é asfixiante pois trabalha como uma lógica não só de dominação, mas de combate
a qualquer meio ou forma que possa horizontalizar as relações tratando o outro
como se fosse necessária a dominação combatendo a educação e a cultura ou
qualquer processo capaz de alterar a correlação de forças.
A
História trouxe novamente ondas temerosas, tão grandes e difíceis de domar que
acomodam previamente aqueles que devem morrer vitimas de uma aparente força
natural e irreversível confortando um estado de coisas ilegítimo e aberrante. Os
fantasmas do passado estão novamente soltos e quase não atormentam mais os
vivos, pois estes se acostumaram com os tormentos que parecem intangíveis
frente à impotência humana resultado de profunda desarticulação consequente da
perda da consciência adquirida em batalhas não só por direitos, mas pela
própria sobrevivência da classe trabalhadora e de sua emancipação enquanto
classe. O grito contra a barbárie, as teses provenientes desde tempos em que diversas
formas de autoritarismo foram implementadas como o nazi-fascismo parece não
surtir qualquer efeito contra a força bruta do Estado e do capital (soando como
coisa anacrônica ou absurda como peças que não se encaixam), que dessa vez
tirou sua capa populista social-democrata ou progressista na clara articulação
com setores da burguesia nacional e internacional na busca por salvaguardar as
relações de mercado e os lucros provenientes da super-exploração do trabalho em
troca das velhas conhecidas promessas de recuperação da economia capitalista
como forma de salvaguardar o projeto civilizatório ocidental na óbvia
manutenção da dominação de classe. Nenhum discurso é novo diante da retomada da
crise estrutural do capital que esmaga trabalhadores em ondas cada vez mais
fortes. É como se a cada porrada o inimigo se multiplicasse ganhando ainda mais
força, tornando-se incontrolável em aberrante figura monstruosa capaz de tudo
destruir, impondo o medo e a consequente resignação frente às inofensivas
manifestações contrárias.
Tudo
isso asfixia o trabalhador tornando-o força descartável ao passo que coopta
outros dando-lhes um poder local a ponto deste também usufruir de superioridade
sobre os demais, funcionando como um pequeno exército de mercenários. Os
trabalhadores com cargo de chefia transformam-se imediatamente em carrascos, que
têm o papel central de reproduzir a opressão, o controle e a estimular boa
produtividade dos subalternos; são representantes direto do patronato. Esse
micro-poder age como uma
contaminação. As empresas privadas fazem importante reciclagem da
mão-de-obra reserva contratando e demitindo num eterno ciclo. Os carrascos
contribuem neste sentido sendo os ouvidos dos patrões. O ambiente de opressão
contra o pensamento crítico e o controle direto de chefes disso e chefe daquilo
aniquila a possibilidade de equalizar as relações como forma de confrontar o
modelo existente, porque este modelo não opera com tolerância ao que pode lhe
prejudicar. Resta pouco, portanto, ao pensamento crítico, a educação e a
ciência em ambientes de empresas privadas pois tudo é feito a consumir o
trabalhador física e mentalmente.
Os
trabalhadores olham a si próprios como concorrentes num sistema desigual
impedindo a solidariedade de classe. Na verdade nada está normal. A intensa
contradição entre trabalhadores e capitalistas não pode mais ser contida senão
por meio da força coerciva que age de forma legal e ilegal matando os
trabalhadores, calando-os. Não está em questão contestar o capitalismo, mas sim
aceitar sua natureza, ou seja, que para sobreviver enquanto sistema
sociometabolico necessita da exploração contumaz da força de trabalho alheia
que se aliena nas relações de mercado. Por isso, é importante resgatar o
pensamento crítico, pois estamos vivendo na era da ignorância, do ódio ao
conhecimento. A desigualdade gritante entre os que tem e os que nada tem por si
só legitima não só a recusa por este sistema, mas a completa destruição, custe
o que custar. Morte ao capital.
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